“- Embora seja pura loucura, há método nela...”
(fala do personagem Polônio em Hamlet, Shakespeare)
Quando algo atinge um espelho, em quantos pedaços ele irá quebrar? Qual é o estrago que vai causar?...E quando algo atinge sua mente, em quantas partes você é dividido? Em quantos cacos a realidade comum se quebra? Qual o tamanho do estrago na sua vida? Impossível dizer ao certo. Assim como um projétil atirado contra o espelho, a doença mental chega sem alarde e o impacto dela contra a realidade pré-estabelecida causa um grande prejuízo na vida e até mesmo na personalidade do portador. A realidade comum se fragmenta em diversos cosmos – um verdadeiro universo de realidades- tornando o portador um estrangeiro no mundo. Porém, até onde a realidade comum – aquela tomada por base para o bom funcionamento social, moral e até mesmo ético – corresponde à verdade de fato? Até onde a realidade comum é “real” e até onde ela se trata de um delírio do real? E o que definiria algo como real (ou seja, pertencente à realidade comum)? O caráter inconclusivo - e até mesmo inconstante - dessas perguntas evidencia quão frágeis são os critérios tomados para definir a sanidade da loucura.
Estabelecer uma realidade comum é uma medida necessária ao convívio em sociedade. Jamais haveria consenso e convívio se cada um de nós vivêssemos de acordo com as regras de nossos mundos particulares. Essa medida é necessária também para estabelecer a moral. Se cada um vivesse de acordo com seus próprios costumes, seria impossível estabelecer uma sincronia que proporcionasse a vida em sociedade. O impasse, entretanto, acontece quando essa realidade estabelecida é utilizada como paradigma para a verdade: Fronteiras entre o real e o irreal são estabelecidas de modo autoritário, fazendo com que tudo aquilo que destoe do dito coerente seja inexistente e, portanto, irreal, alucinatório. Mais perigoso é o impasse quando a realidade estabelecida é tomada como um aforismo: Neste caso, a realidade pré-estabelecida é imposta autoritariamente com o peso de valores e costumes, de modo que os destoantes sejam excluídos dela através das atribuições psiquiátricas. Se considerarmos que a realidade pré-estabelecida não é nada democrática - ou seja, leva em conta apenas as crenças, costumes e conceitos de um grupo de pessoas que, coincidentemente, são aquelas que se encontram no poder-, percebemos o quanto o uso dessa ferramenta é perigoso. E percebemos o quanto é interessante – para essas pessoas principalmente- que seja construída uma verdadeira obsessão por essa tal realidade.
É o que acontece no filme De repente, no último verão de Joseph Makiewicz. O filme conta a história da sobrinha de uma rica e importante socialite – que conhece segredos sobre a homossexualidade do primo – que sofre o trauma de vê-lo ser assassinado monstruosamente. Com medo de que a moça revelasse o segredo do filho, a socialite a rotula de insana e deseja que seja feita uma lobotomia para que sua memória seja prejudicada e, assim, o segredo jamais seja revelado. O filme traz a metáfora de que, muitas vezes, o dito irreal não necessariamente é algo que não deve ser levado em conta. Ele pode ser apenas uma verdade inconveniente para os valores e costumes culturais, religiosos e sociais vigentes. Pode ser tapa na cara da ciência e sua auto-estima inabalável, que se mostra onipotente e conhecedora de tudo, do universo à molécula de DNA. Pode ser um tapa na cara da religião, que afirma saber os mistérios da vida e da morte e o que uma força maior espera e quer de nós. Pode ser um tapa na cara do sistema político e da mídia, que insistem em ordenar a maneira como devemos ser, pensar, nos vestir, nos comportar, comer, beber e nos relacionar... Apenas uma realidade que não interessa.
Além disso, o filme também retrata a construção do delírio do real a partir da obsessão pela realidade pré-estabelecida: A socialite, obcecada pelos valores e costumes estabelecidos para a época – ou seja, a realidade comum da época - idealiza o filho de certa forma que não enxerga a realidade dos fatos e ignora completamente os defeitos dele, chegando a ignorar até mesmo o fato de ele ser homossexual. Com isso, a personagem vive em estado de delírio – talvez deliróide? – constante durante a trama e chega a acusar a sobrinha de insana por não aceitar uma realidade distoante da sua.
Por fim, eis o paradoxo: A realidade é algo muito inefável para ser padronizada e delimitada com palavras. Além disso, estereotipar a realidade significaria licenciar a irrealidade e, portanto, a loucura, uma vez que tudo o que não é condizente com ela é desconsiderado. E tomá-la como o paradigma da verdade é um meio falacioso de estabelecer ordem e poder. Realidade é ponto de vista. É visão de mundo. É traço personológico. O resto é irreal.
Muito Obrigada pela honra de ter meu texto publicado no seu blog...muito obrigada por gastar seu tempo lendo o que eu escrevo...e sobretudo muito obrigada por me dar o carinho e a importância que nunca me deram.
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