terça-feira, 17 de maio de 2011

Gatos


Tem um precário princípio de vida na fonte gelada do condomínio,

preciso voltar lá, pra quem sabe, tentar vivenciar o que nunca presumi...

Sensações recalcadas que ficam pressas nos meus passos,

nessas caminhadas maçantes sonhos que sabem pular da minha testa

...


Deparamos-nos com gatos nas estradas suspensas, animais anarquistas que sempre nos recebem com satisfação e bondade. Animais puros que não querem uma só rotina.
 Diferentemente das pessoas que insistem em viver do seu próprio reflexo tosco, mesmo do menos; mesmice indelével, córtex frouxo.
No final, somos o que sempre queríamos de verdade.





quinta-feira, 12 de maio de 2011

Será que essas ruínas falam?





Que seja feita justiça nas minhas andanças, simplesmente, quero poder parar em baixo de uma boa sombra e recordar o que ninguém pode extinguir... O que ninguém quer notar... (Sobre a escravidão)





New Order - Dreams Never End

MOBY DICK

MOBY DICK
Herman Melville
. . . .

I 

A ESTALAGEM DE A-BALEIA-QUE-FUMA 

Chamem-me simplesmente Ismael. Aqui há uns anos não me
peçam para ser mais preciso -, tendo-me dado conta de que o
meu porta-moedas estava quase vazio, decidi voltar a navegar,
ou seja, aventurar-me de novo pelas vastas planícies líquidas
do Mundo. Achei que nada haveria de melhor para desopilar,
quer dizer, para vencer a tristeza e regularizar a circulação
sanguínea. Algumas pessoas, quando atacadas de melancolia,
suicidam-se de qualquer maneira. Catão, por exemplo, lançou-se
sobre a própria espada. Eu instalo-me tranquilamente num
barco. O que nada tem de espantoso. Os homens não se dão conta
disto, mas todos, em certo momento da vida, sentiram pelo mar
um amor tão profundo como o meu. No entanto, não é como
passageiro que navego. É como simples marinheiro. Porquê?
Porque fazem questão de me pagar pelos tormentos que eu passo
a bordo, e também porque a profissão do mar é a mais bela, a
mais saudável que conheço. Uma última pergunta. Como me
surgiu a ideia, a mim que nunca tinha viajado senão em navios
mercantes, de fazer uma campanha de pesca à baleia? Após
madura reflexão, creio compreender as razões que me levaram a
lançar-me nesta aventura. Em primeiro lugar surge a formidável
imagem da baleia, monstro impressionante e misterioso, 

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que sempre povoou a minha imaginação. E, além disso, tinha
vontade de ver os oceanos selvagens onde os grandes cetáceos
rolam nas ondas as suas massas comparáveis a ilhas vivas.
Queria iniciar-me nos perigos que eles fazem correr àqueles
que os desafiam. Quantas vezes, nos meus sonhos, contemplei
procissões de baleias, pelo meio das quais deslizava uma
espécie de fantasma embuçado, semelhante a uma colina coberta
de neve? Enfim, esperava maravilhas das paisagens e dos ventos
da Patagónia. Em suma, tudo me impelia a não lutar contra o
impulso do meu desejo.
Resumindo, meti algumas camisas no meu velho saco de
marinheiro e, sem mais demora, pus-me a caminho do cabo Horn e
do oceano Pacífico. Isto é, parti primeiro de Manhattan (1),
onde residia, e dirigi-me para New Bedford, no Massachusetts.
Quando cheguei a New Bedford, num sábado à tarde, em pleno mês
de Dezembro, tive a desagradável surpresa de saber que o
pequeno veleiro que servia a ilha de Nantucket já levantara
ferro e que me seria preciso esperar a sua volta até à
segunda-feira seguinte. Como empregar o meu tempo durante
estes dois dias? Porque eu estava mesmo decidido a alcançar
Nantucket, berço dos baleeiros americanos, ponto de partida
das mais antigas expedições.
A noite estava não apenas escura, mas muito fria. Parei
perto de um marco, com o meu saco ao ombro. Depois, meti a mão
ao bolso e tirei algumas moedas.
Meu velho Ismael - disse comigo, olhando para todos os lados
-, é indispensável que encontres um sítio para dormir. Mas não
sejas muito exigente. E, sobretudo, informa-te do preço antes
de escolheres uma estalagem!
Num passo hesitante, pus-me a caminhar pelas ruas e passei
sucessivamente por várias estalagens onde me pareceu mais
sensato nem sequer parar, de tal modo me pareciam sumptuosas. 

*1 Quando Herman Melville escreveu Moby Dick, em 1850-1851,
Manhattan não era ainda o bairro dos arranha-céus de Nova
Iorque. (N. do T.) 

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Enfim, já perto do porto, para o qual me dirigira
instintivamente, vi de súbito num halo de luz uma tabuleta que
balançava, rangendo. Representava um jacto de vapor de água, e
por baixo podia ler-se: A-Baleia-que-Fuma, Peter Coffin,
proprietário. Esta estalagem, de fachada deteriorada e
decadente, não era nada convidativa. Mas, dado o estado das
minhas finanças, não seria exactamente o abrigo que eu
procurava? Empurrei a porta. À claridade de uma lanterna
suspensa do tecto, vários marinheiros, sentados em volta de
uma mesa, bebiam em silêncio. Aproximei-me do dono e
disse-lhe:
- Eu queria um quarto.
- Impossível - respondeu ele -, está tudo ocupado.
Depois, batendo na testa:
- Um momento! O senhor vai à pesca da baleia, não é? Nestas
condições, veria inconveniente em partilhar a cama de um
arpoador? Para se habituar desde já aos seus futuros
companheiros, não é verdade?
A perspectiva de dormir com um homem que eu não conhecia não
me agradava nada. Mas, por uma simples esquisitice, ia ficar
condenado a errar toda a noite numa cidade em que punha os pés
pela primeira vez?
- Quem é esse arpoador? - perguntei.
- Oh! Um bom tipo...
- Sendo assim - respondi num tom resignado -, aceito.
- Muito bem. E agora, sente-se. Vou servir-Lhe uma boa ceia.
Instantes mais tarde introduziu-nos, aos outros clientes e a
mim, na sala ao lado. Ali, a atmosfera glacial era ainda mais
sombria do que no bar. Aquela sala, com efeito, tinha apenas
duas candeias a iluminá-la. Quanto à chaminé... vazia! Vendo a
minha surpresa, o estalajadeiro explicou-me:
- A lareira é um luxo que eu não posso permitir-me...
Para me aquecer não achei outra forma senão abotoar o meu
blusão e segurar com as duas mãos a chávena de chá a escaldar. 

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Porém a ceia revelou-se das mais substanciais. Havia carne,
batatas e, com grande espanto meu, dumplings (1)!
A meu lado um jovem marinheiro de blusão verde - perdoem-me
a expressão - empanturrava-se!
- Ouve lá - disse-lhe o estalajadeiro -, se não começas a
ter mais juízo, não te livras de uma indigestão!
- Oh! Não - murmurei -, é aquele o meu arpoador?
- O seu arpoador, como Lhe chama não é um branco. - Disse o
estalajadeiro com um sorriso que me pareceu diabólico. - E,
além disso, nunca come dumplings. Só gosta de bife... e muito
mal passado!
- Caramba!... E onde está ele agora?
- Não está na sala de jantar. Mas não tardará a conhecê-lo.
Terminada a ceia, voltámos para o bar. De súbito, ouviu-se à
entrada uma barulheira enorme.
- É a equipagem do Grampus! - exclamou o patrão. - Três anos
de ausência. Ora viva, rapazes! Vamos ter enfim as últimas
notícias das ilhas Fiji!
Arrastando pesadas botas, os marinheiros do Grampus
embuçados em peles, como ursos do Labrador, entraram no bar e
dirigiram-se sem hesitar para ablog\cabelo.JPG bocarra da baleia - quero
dizer para o balcão -, onde Jonas - quero dizer, o patrão - se
pôs a encher-lhes copos uns atrás dos outros. Passados uns
minutos, já com o álcool a subir-lhes à cabeça começaram a
fazer algazarra, a gesticular e a entoar desastradamente
canções do mar.
Reparei no entanto que um deles parecia resolvido a não
participar da alegria geral. Tratava-se de um rapagão com mais
de um metro e noventa de altura, com o peito semelhante a uma
prancha e de ombros soberbos. Uma verdadeira montanha de
músculos! A brancura dos dentes contrastava com a pele tostada
do rosto. As pupilas escuras pareciam carregadas de
indecifráveis recordações. 

*1 Prato açucarado, feito de pasta cozida à maneira do
plum-pudding, com frutos. (N. do T.) 

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Quando a algazarra chegou ao cúmulo, ele afastou-se. No
entanto, alguns dos companheiros, tendo-o visto no momento em
que saía da estalagem, foram-lhe no encalço gritando:
Bulkington! Bulkington!
Estava longe de calcular que mais tarde aquele nome
ressoaria de novo aos meus ouvidos...
Pelas dez horas, o bar esvaziou-se como por encanto. E eu
voltei a pensar no meu arpoador. Decididamente não me agradava
nada a ideia de passar a noite com um desconhecido...
- Patrão - disse eu, após uma hesitação -, mudei de opinião.
Em vez de dormir lá em cima com o arpoador, vou passar a noite
aqui, neste banco.
- Como quiser - respondeu ele -, mas previno-o de que não
tenho mantas para lhe dar.
- Passo sem elas - disse eu.
Empurrei o banco contra a parede e estendi-me em cima dele.
No entanto, quase logo a seguir, apercebi-me do meu erro. As
correntes de ar que se infiltravam por debaixo da porta e
pelos interstícios da janela gelavam a atmosfera do bar e
tornavam a minha situação insustentável. Sentei-me no banco,
não sem ter tiritado durante uma boa hora. Por um momento
fiquei a olhar os hóspedes que regressavam uns após outros e
recolhiam aos seus quartos. O estalajadeiro sempre atrás do
balcão, aparava tranquilamente um pedacinho de madeira em
forma de palito.
- Patrão - disse eu - É quase meia-noite, a que horas volta
esse arpoador... sempre a horas tardias?
- Não - respondeu o estalajadeiro sem levantar os olhos -,
de uma maneira geral, volta cedo. Pergunto a mim próprio o que
andará a fazer. Afinal, não deve ter conseguido vender a sua
cabeça...
- O quê? A cabeça dele? O que está para aí a dizer?
- Sim, a cabeça - repetiu o estalajadeiro na sua voz
arrastada. - Eu já lhe tinha dito que não poderia vendê-la em
New Bedford. O mercado está demasiado concorrido...
- Concorrido? 

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Começava a subir-me a mostarda ao nariz.
- Concorrido com quê? - repeti eu.
- Bom... De cabeças, claro!
- Olhe lá, patrão, parece-me que você é que está a querer
dar volta à minha. Se me toma por um grumete, engana-se!
Quanto à cabeça dele...
- Não diga mal dela! Isto é um conselho de amigo. Senão, ele
ainda lhe parte a cara.
- A menos que eu comece por partir a dele!
- Bem, bem, calma - disse o estalajadeiro. - Eu explico-lhe.
- O rapaz em questão acaba de chegar dos mares do Sul. Trouxe
da Nova Zelândia várias cabeças reduzidas. Está a ver,
curiosidades. Ora, ele vendeu-as todas menos uma, aquela que
tenta despachar hoje. Porque amanhã é domingo. Não está a
vê-lo a oferecer uma cabeça reduzida à boa gente que vai para
a igreja! Domingo passado, vi-me doido para o impedir de sair
com uma espécie de rosário composto de quatro cabeças enfiadas
num cordel!
Deixei passar uns minutos. A seguir, depois de ter
reflectido maduramente:
- Olhe, patrão - disse eu -, esse arpoador deve ser um tipo
perigoso!
- Não, não - respondeu o estalajadeiro num tom
tranquilizador. - Aliás, no que me diz respeito, não tenho
razões de queixa dele. Paga regularmente.
Olhou para o relógio.
- É quase meia-noite. Acho que deve ter parado em qualquer
parte. Não voltará a aparecer antes de amanhã de manhã. Olhe,
venha daí - ajuntou ele, pegando numa candeia -, vou
conduzi-lo ao seu quarto. Pode estar certo de passar uma noite
tranquila. O quê, tem medo?
Medo? Não. Mas devo confessar: não me sentia muito
confiante. No primeiro andar, o estalajadeiro introduziu-me
num pequeno quarto frio como gelo.
- Ora aí tem - disse ele, pousando a candeia sobre uma velha
arca que devia servir ao mesmo tempo de mesa de toilette e de
mesa-de-cabeceira. - Está em sua casa. Fique à vontade. Boa
noite.
Quando me voltei, já ele tinha desaparecido. A cama era
enorme, com espaço suficiente para vários arpoadores. Quanto
ao resto, não havia neste cubículo escuro nada além de um
aparador rústico, quatro paredes nuas, um biombo de cartão no
qual se via pintado um arpoador em plena acção; depois, a um
canto, um leito de campanha dobrado e um saco de marinheiro.
Em cima da chaminé luzia vagamente um molho de anzóis, e à
cabeceira da cama estava encostado um grande arpão.
Mas ali, sobre a arca, o que seria aquele objecto esquisito?
Aproximei-me e verifiquei que se tratava de uma espécie de
esteira enorme com as bordas ornadas de franjas coloridas.
Peguei nele e, como tinha uma fenda semelhante às dos ponchos
sul-americanos, enfiei-o pela cabeça e deixei-o cair por cima
dos ombros. Estava húmido, como se o meu misterioso arpoador
tivesse andado com ele à chuva. Mas, sobretudo, que peso!
Pus-me em frente de um pedaço de espelho pendurado na parede.
Assustado com a imagem que ali se reflectia apressei-me a
desembaraçar-me daquela estranha vestimenta dizendo comigo:
"Como pode um cristão digno deste nome passear pelas ruas
assim enfarpelado?"
Pensei ainda durante uns instantes naquele arpoador
negociante de cabeças reduzidas e na sua estranha peça de
vestuário. A seguir, enchendo-me de coragem, despi-me -
blusão, colete, calças, botas -, e depois de ter apagado a
candeia, enfiei-me na cama, deixando o meu destino entregue à
Providência.
Passados talvez uns dez minutos, quando estava prestes a
adormecer, ouvi um passo pesado no corredor, enquanto por
debaixo da porta parecia deslizar uma débil claridade.
"Deus me proteja!" - pensei. - "É ele!"
Segurando na mão direita uma candeia e na esquerda a cabeça
reduzida de que me falara o estalajadeiro, o recém-chegado 

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entrou no quarto. Depois, sem olhar para a cama, aproximou-se
do saco de marinheiro colocado a um canto e começou a desatar
os nós. Por fim, bruscamente, voltou-se. Santo Deus, que
espectáculo! Pensei primeiro, ao ver o seu rosto onde
alternavam o amarelo, um roxo quase purpúreo e o negro, que
acabava de sair de uma zaragata e que tivera de recorrer aos
cuidados de um cirurgião, mas quando, por acaso, ficou sob a
luz da candeia apercebi-me do meu erro: o que eu tomara por
emplastros e cicatrizes recentes não era mais que um conjunto
de tatuagens multicores de efeito deveras impressionante...
Entretanto, o arpoador, ignorando ainda a minha presença,
continuava a remexer no seu saco. Retirou de lá um tomahawk -
mas seria realmente um tomahawk? - e uma bolsa de pele de
foca, ainda cheia de pêlo. Depois, enfiou no saco a horrorosa
cabeça reduzida. Em seguida tirou o grande chapéu de feltro.
Pouco me faltou para soltar uma exclamação de surpresa. Não
tinha um único cabelo - à excepção de uma trança enrolada
sobre a testa num minúsculo carrapito. Que fazer? Tinha
vontade de fugir, apesar de a cobardia não ser dos meus
maiores defeitos. Mas ele estava entre a porta e a cama.
Claro, podia ter saltado pela janela...
Enquanto assim pensava e com dificuldade dominava o medo,
ele começara a despir-se tranquilamente. Verifiquei que, tal
como o rosto, o tronco, o peito, os braços e as coxas
desapareciam sob um inextricável entrelaçado de tatuagens.
Quanto às pernas, tão decoradas como o resto do corpo,
julguei distinguir nelas dezenas de rãs verdes que pareciam
trepar por palmeiras de troncos amarelos... Começava a
compreender: encontrava-me fechado naquele sinistro quarto com
um selvagem, trazido sem dúvida por um baleeiro dos mares do
Sul. E, além disso, um amador de cabeças! Se achasse a minha a
seu gosto...
Mas as minhas emoções ainda não tinham chegado ao fim. Agora
quase nu - com uma tanga estreita à volta dos rins -, tirou de
um dos bolsos do blusão pendurado numa cadeira uma estatueta 

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negra com chifres que foi colocar entre os cães da lareira e
diante da qual acendeu, com um punhado de cavacos, um pequeno
fogo de sacrifício. Depois, prostrado ante a estatueta,
entregou-se a intermináveis momices de pagão, que prefiro não
descrever. Após o que, tendo sem dúvida acabado de rezar,
pegou no tomahawk, colocou o seu ferro em contacto com os
cavacos que acabavam de arder, meteu na boca a extremidade do
cabo e puxou algumas fumaças. Depois, soprou a candeia e, na
escuridão completa, de tomahawk nos dentes, saltou para a cama
e caiu tão perto de mim que não pude deixar de gritar. O
espanto arrancou-lhe um grunhido e, sem mais demora, pôs-se a
apalpar-me.
Encostei-me à parede, gemendo.
- Largue-me, suplico-Lhe! Deixe-me levantar. Vou acender a
candeia!
Porém ele, numa inconcebível algaraviada:
- Quem ser tu? Tu não querer dizer? Então, eu matar tu!
E enquanto falava, sacudia por cima de mim o
cachimbo-tomahawk, espalhando a cinza pela cama, de tal modo
que pensei:
"Não só vai matar-me, como também pegar fogo à minha
camisa!"
Em vista disto, pus-me a berrar:
- Patrão! Senhor Coffin! Socorro! Socorro!
Quanto ao meu selvagem, continuava a repetir:
- Quem ser tu? Tu não querer dizer? Se tu não querer dizer,
mim matar tu!
Mas, graças a Deus, neste momento o estalajadeiro entrou no
quarto, com uma candeia na mão. De um pulo, saltei da cama e
corri a acolher-me sob a sua protecção.
- Não tenha medo - disse-me ele com o tal sorrizinho
diabólico. - O Queequeg não tocará num só cabelo da sua
cabeça.
- Primeiro deixe-se desse sorriso imbecil! - gritei
irritado. - Porque não me disse que este arpoador era na
realidade um canibal?
- Julgava que sabia... que tinha compreendido, pois! Eu
disse-lhe que ele andava pela cidade a tentar vender a sua
última cabeça reduzida... Vamos, deite-se e não falemos mais
disso.
E, dirigindo-se a Queequeg - pois era este o nome do meu
canibal:
- Ouve, Queequeg. Tu conhecer mim. Mim conhecer tu. Ele
dormir com tu. Tu compreender?
- Sim, mim compreender - respondeu Queequeg voltando a fumar
o seu tomahawk.
Levantou a manta e voltando-se para mim:
- Tu entrar lá - ajuntou ele com uma expressão quase
delicada e um gesto de convite digno de um civilizado.
Examinei-o por instantes. Apesar das tatuagens, estava
bastante limpo e até atraente para um selvagem.
Afinal - pensei -, é um homem tal como eu.
Talvez procedesse mal fazendo este barulho. Não será melhor
dormir com um canibal sóbrio do que com um cristão embriagado?
Depois, dirigindo-me ao estalajadeiro:
- Patrão - disse eu -, mande-o tirar daí esse tomahawk... ou
esse cachimbo, se prefere. Em todo o caso, diga-lhe que não
fume. Não quero dormir com um homem que fuma na cama. É
perigoso. E além disso o cheiro incomoda-me.
Logo que o estalajadeiro lhe deu a conhecer o meu desejo,
Queequeg obedeceu imediatamente e encolhendo-se o mais
possível, como para mostrar que não me tocaria numa unha,
convidou-me de novo com uma delicadeza perfeita a deitar-me.
- Boa noite patrão - disse eu. - Agora, pode-se ir embora.
Voltei a deitar-me, e cumpre-me reconhecer que, nessa noite,
dormi melhor do que em toda a minha vida. 

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II 
DOIS AMIGOS 

Na manhã seguinte, acordei ao alvorecer. Qual não foi a
minha surpresa ao verificar que o meu companheiro me agarrava
pelo pescoço da maneira mais afectuosa do mundo! Por várias
vezes tentei libertar-me em vão.
Estou em bons lençóis! - pensei. - Que vai ser de mim nesta
inquietante estalagem, deitado ao lado deste canibal armado
até aos dentes e que parece mesmo resolvido a não me largar?
Por fim, gritei:
- Que Eh, Queequeg! Acorda, amigo.
Ele soltou um grunhido, sacudiu-se como um cão ao sair da
água, olhou-me uns instantes, esfregando os olhos, saltou
bruscamente da cama e deu-me a entender, mais por gestos do
que por palavras, que ia vestir-se primeiro, a fim de me
permitir dispor à vontade do quarto. Decididamente, usava de
delicadezas que muitos civilizados poderiam invejar!
Para se vestir, começou por cima, isto é, pôs em primeiro
lugar o chapéu e o blusão. Depois, com as coxas e as pernas
sempre nuas, meteu-se debaixo da cama, com muitos suspiros e
gemidos e ali entregou-se à tarefa de calçar as botas.
Porque acharia ele necessário calçar as botas escondido?
Ora! - pensei. - É sem dúvida o seu modo de mostrar pudor... 

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Mas de qualquer modo não me recompunha do meu espanto!
Por fim, saiu de debaixo da cama, com o chapéu amachucado e
enterrado até aos olhos. Depois, fazendo estalar o couro das
botas, molhou a cara e ensaboou as faces com um sabão duro
como pedra que tirou do saco. Iria barbear-se? E com quê? Mas,
de súbito, vi-o arrancar o cabo de ferro do arpão, afiá-lo
numa das botas e... "oh, céus!", postara-se diante do
fragmento de espelho suspenso na parede e vigorosamente
raspava o rosto com aquela assustadora lâmina! Um pouco mais
tarde, terminada a toilette, como ele se dirigia já para a
porta, não pude deixar de lhe gritar:
- Então, Queequeg! E as calças?
Ele voltou-se, agradeceu-me com um sorriso que mais parecia
uma careta, enfiou as calças e, apertando o seu arpão na mão
esquerda, como um bastão de marechal, saiu altivamente do
quarto.
Quando cheguei ao bar, estava já instalado entre outros
baleeiros: marinheiros, primeiros-tenentes, segundos-tenentes,
carpinteiros, veleiros, arpoadores, mestres de equipagem,
etc., que bebiam café, mastigando pãezinhos quentes e
estaladiços. Mas ele contentava-se em picar com a ponta do
arpão bifes quase crus, que estavam na outra extremidade da
mesa, e devorava-os um após outro com uma calma
impressionante.
Nesse dia, não sabendo que fazer, deambulei toda a manhã e
uma parte da tarde pelas ruas e pelos cais de New Bedford. Foi
somente à tarde que voltei a encontrar Queequeg, sentado à
mesa do bar da estalagem. Estava bem longe de calcular que a
nossa amizade nascente ia progredir em poucas horas a passos
de gigante. Começámos por jantar lado a lado, conversando
acerca da nossa profissão, do tempo que fazia e da nossa
partida para Nantucket, que devia ter lugar no dia seguinte.
Em seguida fomos para o quarto. Ali, depois de o meu
companheiro dizer aquelas bizarras orações ante o seu ídolo
negro, iluminado por um lume de cavacos semelhante ao da 

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véspera, deitámo-nos muito sensatamente. Queequeg acendeu o
seu cachimbo-tomahawk e, de pergunta em pergunta, consegui
fazê-lo contar a sua história.
Queequeg nascera em Kokovoko, pequena ilha situada muito
longe para sudoeste. Não a procurem no mapa. Seria uma perda
de tempo. Aliás, sem dúvida já repararam: as regiões
interessantes nunca figuram nos mapas.
Em geral, os meninos selvagens desejam apenas uma coisa:
correr quase nus nas suas florestas ou nas suas selvas natais.
Porém Queequeg tinha uma ambição. Queria conhecer da
cristandade outra coisa além dos baleeiros, que de tempos a
tempos apareciam nas margens da sua ilha, onde o pai era uma
espécie de rei.
Em resumo, tendo um barco ancorado na baía de Kokovoko,
Queequeg apresentou-se a bordo com esperança que acedessem a
contratá-lo como marinheiro. Mas a equipagem estava completa e
mandaram-no passear. Então, usou de um expediente. Só, na sua
piroga, foi postar-se num local por onde o barco devia passar
para se afastar da ilha. Quando este apareceu, aproximou-se
tão rapidamente quanto possível, serviu-se de uma das
correntes para se içar por cima do filerete, lançou-se de
bruços sobre a ponte e agarrou uma grossa argola de ferro,
gritando:
- Eu nunca mais ir embora, mesmo se vocês cortar mim em
bocados!
Ameaçaram-no de o atirar aos tubarões, de lhe cortar os
pulsos. Como verdadeiro filho de rei que era, nem pestanejou.
Por fim, o capitão, impressionado com a sua coragem, declarou:
- Está bem. Fico contigo.
E dirigindo-se aos homens que o rodeavam:
- Ocupem-se dele e façam com que venha a ser um bom
baleeiro.
Depois disto, Queequeg sulcara os mares em todos os
sentidos, participara em numerosas campanhas de pesca,
visitara portos e cidades. Sentia-se satisfeito entre aquela
cristandade, com a qual ele tanto desejara travar 

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conhecimento? Julguei compreender que perdera a esse respeito
algumas ilusões...
- Cristãos nem sempre melhores que pagãos - disse-me ele.
Como cristão, teria eu o direito de lhe responder que estava
até certo ponto dentro da razão? Preferi deixar passar alguns
instantes. Depois perguntei-lhe:
- Tencionas voltar à tua ilha e seres coroado? Porque,
enfim, desde que partiste, o teu pai deve ter morrido.
- Sim, ele morto - respondeu. - Mas mim não pensar voltar
lá. Mim querer ainda ver muitas coisas e arpoar muitas
baleias. Agora, nós dormir, para nós partir amanhã para a
grande pesca!
Quando acabou de fumar o seu cachimbo-tomahawk, pousou-o no
chão, junto de si. Depois, como nos havíamos tornado
verdadeiros amigos, beijou-me à maneira do seu país, isto é,
apertando a sua fronte contra a minha. Após o que voltámos as
costas um ao outro e, passado um minuto, dormíamos os dois o
sono dos justos.
No dia seguinte, ou seja a segunda-feira da nossa partida,
pedimos emprestado um carrinho de mão para carregar a nossa
bagagem e, com este equipamento, dirigimo-nos ao porto, onde o
pequeno veleiro Moss, que servia Nantucket, parecia estar à
nossa espera para levantar ferro. Mal nos fizemos ao largo,
senti-me invadido por uma emoção, que era um misto de alegria
e de embriaguez. Queequeg, esse, nem procurava dissimular o
seu contentamento. Tínhamos enfim deixado terra firme, com as
suas maçadas, as suas inumeráveis restrições. À proa, junto do
gurupés, lançámos ao vento grandes gargalhadas, sem nos darmos
conta de que os passageiros zombavam de nós. Voltando-se de
súbito e absolutamente por acaso, Queequeg reparou que um
daqueles cretinos, uma espécie de alfenim, lhe estava fazendo
caretas... Então, sem hesitar, larga o arpão, agarra o
fedelho, fá-lo saltar no ar, apanha-o, aplica-lhe uma boa
palmada e deixa-o cair desamparado. 

19 

Depois, com a maior tranquilidade, volta as costas, acende o
tomahawk e passa-mo para eu tirar uma fumaça.
Mas o jovem imbecil, espavorido, corria já para o capitão,
bramindo:
- Capitão, capitão! Este sujeito... este selvagem, é o
diabo, capitão, é o diabo!
O capitão, um grandalhão magrizela ressequido pelo mar,
caminhou resolutamente para Queequeg.
- Ora ouve lá! Que é que te deu? Não vês que podias ter
morto este pobre tipo?
- Que dizer ele? - perguntou Queequeg, olhando-me com a
inocência de uma criança acabada de nascer.
- Diz que podias ter morto aquele tipo - expliquei,
mostrando-lhe a sua vítima que tremia ainda como varas verdes.
- Mim matar ele? - perguntou Queequeg, dando ao rosto
tatuado uma expressão de sobre-humano desprezo - Oh! não! Ele
peixinho muito pequeno. Queequeg nunca matar peixes pequenos.
Queequeg matar baleias grandes!
- Ora ouve! - rugiu o capitão -, se tu matas as baleias, eu
cá encarrego-me de te matar. E não tarda nada!
Porém esta ameaça irrisória, dada a força prodigiosa de que
o meu canibal acabava de dar provas, ficou por ali. Com
efeito, devido a uma terrível rajada de vento, o barco
inclinara-se de súbito com violência, sacudindo a maior parte
dos passageiros e lançando borda fora o alfenim, sem dúvida
menos seguro nas pernas do que os companheiros. Várias pessoas
gritaram:
- Homem ao mar! Homem ao mar!
Houve um curto período de pânico. A equipagem, com gestos
febris e desastrados, esforçava-se por largar o escaler à
popa. Então, tão calmo como se estivesse em terra firme,
Queequeg tirou o blusão, subiu para o filerete e mergulhou.
Ao fim de uns dez segundos, reapareceu à superfície, nadando
com uma das mãos e segurando com a outra o infortunado
alfenim, que parecia ter perdido os sentidos. 

20 

Mal voltara para a ponte, e enquanto reanimavam o afogado,
Queequeg viu-se rodeado por todos, acariciado, felicitado.
Recebeu até, com muita dignidade, as desculpas do capitão.
Depois, com inteira despreocupação, voltou a vestir o
blusão, reacendeu o seu cachimbo-tomahawk e olhou em volta
como um homem não somente satisfeito consigo próprio, mas com
o mundo inteiro, e que pensa: "Não é natural que nós outros,
canibais, ajudemos de vez em quando estes pobres cristãos?"
A partir desse dia, e até àquele em que efectuou o seu
último mergulho, liguei-me a ele como uma lapa ao rochedo.
Não houve qualquer outro incidente durante o resto da
viagem. À tardinha chegámos à vista de Nantucket. Nantucket!
Senti-me extremamente emocionado quando avistei pela primeira
vez esta pequena ilha, composta por uma colina árida e uma
simples praia, de onde partem desde tão longa data os mais
ousados baleeiros da Terra! Caía a noite quando o Moss lançou
ferro no porto. Nada mais tínhamos a fazer além de cear e
procurar um abrigo. O patrão de A-Baleia-que-Fuma
recomendara-nos a pensão de um certo Hosea Hussey, seu primo,
proprietário de As-Duas-Canecas, uma das melhores estalagens
de Nantucket, como ele precisara. Pusemo-nos pois
imediatamente à procura dessa maravilha e, após termos
deambulado uma boa hora pelas ruelas, encontrámo-nos de súbito
ante uma casa cuja fachada era incrustada de conchas e a
tabuleta representava dois enormes copos de madeira balançando
ao vento da noite.
- Bom - disse eu a Queequeg -, acho que é aqui.
Empurrámos a porta. No bar, a atmosfera tresandava a peixe.
Aliás, toda aquela taberna parecia estar em molho de peixe. A
senhora Hussey, imponente criatura de expressão autoritária,
trazia ao pescoço um colar de vértebras de bacaLhau. O senhor
Hussey folheava um livro de contabilidade encadernado em pele
de tubarão e, como jantar, serviram-nos, acompanhado de dois
copos de leite - que também cheirava vagamente a peixe, 

21

embora fosse bastante cremoso -, um prato extremamente
saboroso, que constava de amêijoas cozidas com bolachas
esmagadas e minúsculos pedacinhos de porco salgado; tudo, bem
entendido, temperado por mão de mestre. Será preciso
acrescentar que nos bastou obedecer ao nosso apetite, aguçado
pelo ar do mar, para devorarmos num abrir e fechar de olhos
este copioso e memorável prato?
Engolida a última garfada, a senhora Hussey deu-nos um
candeeiro, dizendo:
- E para o pequeno-almoço, o que é que desej am?
Amêijoas com porco salgado, como esta noite?
- Claro - respondi após uma breve hesitação, devido à
surpresa. - Mas ponha também dois arenques fumados para
variar. 

22  

III 

O MEU BELO NAVIO 

Mal nos encontrámos deitados lado a lado, achei que era
tempo de preparar os nossos planos. Pois, agora que
atingíramos o nosso fim, precisávamos sem demora de procurar o
baleeiro que quisesse aceitar-nos a bordo.
No dia seguinte, ao alvorecer, deixei Queequeg e a estátua
do seu deus, Yojo, fechados no quarto. Depois saí da estalagem
e dirigi-me para o porto. Foi-me necessário empreender
numerosas tentativas e fazer talvez uma centena de perguntas
ao acaso antes de saber que iam aparelhar três navios para
viagens de três anos. Estes três navios eram a Endemoninhada,
a Gulodice e o Pequod, sendo este último nome o de uma tribo
índia do Massachusetts, aniquilada há muito. Andei um momento
em volta da Endemoninhada, depois em volta da Gulodice. Por
fim, subi a bordo do Pequod e, quase logo, compreendi que era
este que nos convinha.
Já viram, com certeza, barcos estranhos no decorrer da vossa
existência: lugres, juncos japoneses, galeotes. Mas, podem
crer, nunca viram nada tão estranho como este estranho Pequod.
Tratava-se de um navio da velha escola, mais pequeno que
grande, semelhante a um monstro com garras. O seu casco
maltratado pelos tufões e acariciado pelas bonanças dos quatro
oceanos do planeta, tinha a cor bronzeada das faces de um
granadeiro francês que tivesse combatido sucessivamente no
Egipto e em Moscovo. 

23 

A sua venerável proa parecia prolongada por uma barba. Os
mastros eram rígidos como a coluna vertebral de uma estátua.
As pontes gastas ostentavam numerosas e inquietantes fendas.
Mas não era tudo: havia um século que o Pequod sulcava os
oceanos e os seus sucessivos comandantes tinham-no
sobrecarregado de desenhos e de acessórios, que lhe davam o
aspecto de um escudo antigo ou de uma espécie de troféu
ambulante. Assim, os seus fileretes, sobre os quais tinham
aplicado agudos dentes de cachalote, lembravam dois
monstruosos maxilares e a barra do leme - oh, espanto! - era
constituída não por uma sólida peça de madeira mas sim por um
maxilar superior de cachalote, de uma brancura deslumbrante.
Nobre navio, na verdade! No entanto, como de todas as coisas
nobres, emanava dele uma pesada tristeza.
Avistando um velhote sentado atrás do mastro grande, sob uma
espécie de tenda que lembrava pela forma o wigwam dos Índios,
perguntei-lhe:
- É você que comanda o Pequod?
- Não - respondeu -, sou o capitão Peleg, um dos
proprietários. Já não ando no mar. Mas tu, o que queres?
- Queria embarcar.
- Querias embarcar? Sabes alguma coisa de baleias?
- Não. Mas aprendo depressa, pode estar certo. Fiz várias
viagens na mercante e...
- Não me fales nunca da mercante. Vê se entendes: na minha
frente nem uma alusão a essa porcaria, a essa imundície da
marinha mercante! Senão... Vês esta bota? Pois bem, ela não
tardará a achar o caminho do teu traseiro!
Bastante impressionado, fechei-me num silêncio prudente.
- Já alguma vez viste o capitão Acab - tornou ele.
- O capitão Acab? - repeti.
- Sim. É ele o comandante do Pequod. Agora ouve bem:
antes de assinares o contrato, é bom que vejas o capitão
Acab. Não precisas de dois segundos para verificares que só
tem uma perna.
- Devo compreender - balbuciei -, que a outra lhe foi tirada
por... por uma baleia?
- Isso mesmo, meu rapaz! Mas tirada é uma palavra muito
fraca. Deve dizer-se arrancada, triturada, esmagada e pelo
mais monstruoso cetáceo - baleia ou cachalote, para nós é tudo
o mesmo - que alguma vez estoirou uma chalupa! Percebes,
agora?... Aliás - ajuntou ele depois de me ter examinado com
atenção -, duvido que a profissão de baleeiro te convenha.
Acho-te um pouco brando nas atitudes, na linguagem. Não estás
a brincar comigo quando me dizes que já andaste embarcado?
- Asseguro-lhe... Fiz quatro viagens na mercante.
- Uma vez por todas - explodiu ele -, deixa-me em paz com a
tua mercante! Então, sempre estás decidido a ir à pesca da
baleia?
- Claro.
- Muito bem. Sentes-te capaz de lançar um arpão à garganta
de uma baleia e de a perseguir na chalupa até ela se cansar?
Vamos, responde, responde depressa! Gosto das respostas
rápidas!
- Acho que sou capaz... Com um pouco de treino, está visto.
- Óptimo! Pois bem, podes assinar o teu contrato sem demora.
Segue-me.
Pela escada da escotilha, levou-me até à cabina. Ali,
apresentou-me ao capitão Bildad, seu sócio, um sujeito alto e
magro, abotoado até ao queixo, e que parecia absorvido na
leitura de uma grande Bíblia. O capitão Bildad, também na
reserva, tinha uma acentuada fama de avarento.
- Bildad - exclamou o capitão Peleg -, lá estás tu outra vez
com esse calhamaço! Há trinta anos que lês as Sagradas
Escrituras, deves sabê-las de cor!
O interpelado ergueu os olhos e fitou-me com atenção.
- Ele quer embarcar - explicou-lhe Peleg, indicando-me.
- Queres mesmo embarcar no Pequod - perguntou-me o capitão
Bildad numa voz cavernosa. 

24 25 

- Quero, sim - respondi num tom resoluto.
- Que pensas dele, Bildad? - perguntou o capitão Peleg.
- Acho que deve servir.
Depois começou, não sem uma certa aspereza, a discussão
relativa às massas que eu receberia no fim da viagem. Já sabia
que nas baleeiras, os membros da equipagem, em lugar de serem
pagos ao mês ou ao ano, recebem, consoante o lugar que ocupam
a bordo, uma parte dos lucros a que se dá o nome de massas.
Depois de eu ter aceitado receber apenas a tricentésima
parte dos lucros e assinado o contrato, subi para a ponte com
o capitão Peleg.
- Capitão - disse-lhe eu -, tenho um camarada que também
gostaria muito de embarcar. Posso trazer-lho amanhã?
- Com certeza. Traga-o. Veremos se serve. Ele já participou
em alguma campanha de pesca à baleia?
- Claro! É um verdadeiro baleeiro. Matou um número infinito
de baleias.
- Bom, está combinado. Traga-o amanhã.
Despedi-me do capitão Peleg. Porém, no momento de deixar o
Pequod, reconsiderei e voltei para trás.
- Capitão - disse eu -, onde poderei encontrar o capitão
Acab?
- O que é que lhe queres? Estás contratado. De que mais
precisas?
- Pois é... mas, sabe, eu gostava ao menos de o ver.
- Vê-lo... - repetiu ele com uma expressão pensativa.
Penso que neste momento isso seria bastante difícil. Ele
esconde-se. Fica fechado na cabina. Estará doente. Não parece.
No entanto... Aliás, ele recusa abrir-me a porta. Assim, é
provável que fizesse o mesmo contigo... Sabes, meu rapaz, o
capitão Acab é um homem bizarro... Mas um homem a sério! De
resto, em breve travarás conhecimento com ele, podes crer!
Queria explicar-te... Disse-te que o capitão Acab é um homem 

26

sério. Pois bem, não é exactamente assim. O capitão Acab... é
uma espécie de deus... Sim, uma espécie de deus. Fala pouco.
Mas aconselho-te a escutá-lo com atenção. Ele conhece tudo,
andou por toda a parte, esteve mesmo entre os selvagens que se
alimentam de carne humana. Estudou nas universidades. Está
familiarizado com mistérios infinitamente mais profundos do
que os do oceano.
Como arpoador não há quem o iguale entre os baleeiros de
Nantucket. No entanto - não sei se vais compreender -, quando
lança o arpão dá a impressão de querer atingir outra coisa sem
ser a baleia, um inimigo pessoal... Numa palavra, o capitão
Acab... é Acab, sabes, aquele rei de Israel...
- Sim, bem sei - respondi -, e, deixe-me que lhe diga, um
rei muito mau. Se a memória não me atraiçoa, o profeta Elias
predissera que, quando o matassem, os cães lamberiam as suas
chagas...
- É isso... Mas chega-te aqui um pouco mais para o pé de mim
- murmurou o capitão Peleg, com um olhar que quase me
assustou. - Outro conselho, meu rapaz: enquanto estiveres a
bordo do Pequod, nunca repitas o que acabei de te dizer. Se o
capitão Acab tem tal nome, a culpa não é dele. Acab é um bom
homem, tão piedoso como qualquer outro. Claro, às vezes também
pragueja, tal como eu. No entanto, reconheço que sob muitos
pontos de vista é superior a mim. Como é natural, desde que
aquela maldita baleia Lhe cortou uma perna, no decurso da
última viagem, ele passa tormentos. Como deves calcular,
dói-lhe o coto! E, se se mostra rabugento e às vezes até de
uma implacável violência, quem ousaria censurá-lo? É verdade
que ele nunca foi falador nem alegre. Mas estou certo de que
acabará por reencontrar o seu humor normal... Não quero, meu
rapaz, que penses mal dele porque o acaso o dotou de um nome
que é o do pior de todos os reis da História Sagrada. E, além
disso, não te esqueças: este velho casou tarde com uma
rapariga encantadora que lhe deu um filho. Bom pai, esposo
afectuoso, como poderia ser dotado de um carácter naturalmente 

27

cruel? Acredita, por mais rude que seja, Acab tem o seu lado
humano.
Depois de ter deixado o capitão Peleg, voltei para a
estalagem a passo lento. O capitão Acab inspirava-me agora uma
espécie de simpatia mesclada de muito medo. E, mais do que
nunca, vontade de o conhecer...
No dia seguinte de manhã, o contrato de Queequeg levantou
dificuldades. Quando o meu companheiro e eu nos aproximávamos
do Pequod, uma voz rude fez-nos estacar:
- Alto aí, Ismael! Não me tinhas dito que o teu camarada era
um canibal? Ora, fica sabendo, a bordo não são admitidos
canibais!
Ergui a cabeça e vi o capitão Peleg e o capitão Bildad eng
quem falara. De momento, costados ao filerete. Fora Pele não
soube que responder. Depois, recompondo-me:
- Em primeiro lugar, capitão - respondi -, o Queequeg já não
é um verdadeiro canibal. Há muito tempo que deixou de comer
carne humana. Por outro lado, porque não lhe permite mostrar
do que é capaz?
Os dois oficiais conferenciaram em voz baixa. Por fim, o
capitão Peleg, depois de ter tido alguma dificuldade em
convencer o austero Bildad, gritou:
- Bom, estamos entendidos, subam a bordo. Temos vontade de
ver de que é capaz essa espécie de selvagem!
Uns segundos mais tarde, encontrávamo-nos na ponte.
Queequeg, que compreendera bem o que esperavam dele, saltou
para a proa de uma das baleeiras suspensas ao lado do navio.
Depois, após ter-se firmado no joelho esquerdo, brandiu o
arpão e declarou, na sua habitual algaraviada:
- Tu ver, captão, aquele piqueno mancha de alcatrão longe,
na água? Tu bem ver? Então tu pensar que ser olho de baleia. E
tu agora olhar!
O arpão partiu zunindo, fendeu o ar e caiu precisamente no
meio da mancha de alcatrão!
- Agora - disse Queequeg, puxando tranquilamente a corda à
qual estava fixado o arpão -, tu compreender, captão? 

28

Se mancha de alcatrão ser olho de baleia, baleia toda morta!
- Depressa Bildad - gritou Peleg ao sócio. - Este tipo tem
de assinar já o contrato. Não é todos os dias que se arranjam
arpoadores com esta classe!
Voltámos para a cabina e, com grande satisfação minha,
Queequeg não tardou a ficar inscrito na lista da tripulação.
Quando deixávamos o Pequod, um indivíduo pobremente vestido,
com um lenço preto ao pescoço, um blusão coçado e calças
remendadas, deteve-nos com um gesto e, voltando para nós o
rosto bexigoso, perguntou-nos com ansiedade:
- Alistaram-se neste navio?
- Alistámos sim - respondi.
- Mas então, e as vossas almas, pensaram nisso?
- As nossas almas? - repeti, abrindo muito os olhos.
- Oh! Claro - tornou ele -, talvez não tenham disso. Mas
ele, ele!, tem alma suficiente para substituir a que falta aos
outros!
- Queequeg - disse eu -, este tipo é marado. Está a
falar-nos de uma pessoa que não conhecemos. Vamos embora.
- Esperem - gritou o desconhecido. - Vocês disseram a
verdade. Já viram o capitão Acab? Ainda não o viram, pois não?
E alistaram-se no Pequod! Infelizes! O que tem de acontecer,
acontecerá. Adeus. Desculpem tê-los feito parar.
- Oiça lá, meu amigo - disse eu, porque aquele doidivanas
começava a intrigar-me -, se sabe alguma coisa, se conhece
algum segredo...
- Não!, não! Tarde de mais, tarde de mais! Uma vez mais,
adeus.
- Está bem, adeus - disse eu -, mas antes de nos separarmos,
gostaria muito de saber o seu nome.
- Elias! - respondeu ele numa voz sepulcral.
Depois, voltou-nos as costas.
- Elias! - murmurei enquanto Queequeg e eu nos púnhamos de
novo a caminho. 

29 

Elias... O profeta que anunciara ao sombrio Acab da História
Sagrada que os cães lhe lamberiam as chagas antes que ele
soltasse o último suspiro?... Não; não era possível. Nada
daquilo tinha pés nem cabeça. E, apesar da inquietação que me
possuía, consegui persuadir-me de que estivéramos a falar com
um farsante.
Como poderia eu imaginar que, nas semanas e nos meses que
iam seguir-se, as palavras ambíguas deste farsante se
esclareceriam dentro de mim e me acudiriam frequentemente ao
espírito? 

30 

IV 

O CAPITÃO ACAB 

Tivemos de esperar ainda dois dias antes de sabermos que
estava tudo aparelhado e que o Pequod se aprontava para
levantar ferro. Assim, uma manhã pelas seis horas, na penumbra
de uma alvorada cinzenta e brumosa, pusémo-nos a caminho do
porto.
- Se não me engano - disse eu a Queequeg -, acho que vejo
além marinheiros a correr. Aposto que partimos ao nascer do
Sol. Vamos depressa.
- Alto! - gritou uma voz, enquanto o recém-chegado nos
agarrava cada um por um ombro.
Eu já reconhecera Elias.
- Sempre embarcam? - perguntou ele.
- Tira a pata! - disse eu. - Não temos um instante a perder.
- Sim, tu deixar nós! - apoiou Queequeg, num tom ameaçador.
- Mas embarcam mesmo? - insistiu Elias.
- Claro que embarcamos, claro! - gritei eu.
- Bom, paciência... paciência...
- Como, paciência?
- Queria avisá-los - respondeu ele -, mas, uma vez mais vejo
que, infelizmente, é demasiado tarde!... Ora! Agora já não tem
importância. E, depois, têm de se cumprir as profecias... 

31

Que pensam do tempo? Frescalhota, esta manhã, não acham? Bom,
adeus, mais uma vez. Se as minhas previsões estão certas tão
depressa não nos veremos... Talvez no Juízo Final.
E, com estas palavras, voltou-nos as costas e afastou-se no
seu passo mecânico. Fiquei uns segundos a olhá-lo, todavia
impressionado com a insistência daquele pássaro agoirento em
perseguir-nos...
Subimos para bordo. Vi, não sem surpresa, que as pontes
estavam desertas. Que era então feito dos homens que, há
pouco, eu vira correndo na direcção do Pequod? Por fim,
descobrimos no castelo da proa um velho marinheiro
esfarrapado, que dormia em cima de duas arcas colocadas lado a
lado, ressonando como um porco. Decididos a esperar os
acontecimentos, sentámo-nos ao pé dele e começámos a fumar o
tomahawk de Queequeg. De súbito, incomodado sem dúvida com o
cheiro do tabaco, o velho marinheiro resmungou meio a dormir,
depois sentou-se esfregando os olhos.
- Viva, rapazes - disse ele -, quem são vocês?
- Alistámo-nos no Pequod - respondi. - Quando partimos?
- Bem... Hoje. O capitão embarcou ontem.
- Que capitão? O capitão Acab?
- Quem havia de ser, meu rapaz?
Preparava-me para lhe fazer outras perguntas a respeito de
Acab, quando um ruído na ponte me impediu de continuar.
- Ah! Lá está o Starbuck, o imediato, a acordar! - tornou o
velho marinheiro. - Aquele é um homem... um homem bom e
piedoso... e, com tudo isso, activo Vamos, basta de dormir!
Dizendo isto, ergueu-se. Nós seguimo-lo. Agora, era quase
dia. A equipagem que, sem dúvida, ficara até tarde nos bares
do porto começou a embarcar. Os gajeiros subiam para os cestos
da gávea. Os oficiais movimentavam-se, emitindo ordens.
Porém, o capitão Acab, fechado na sua cabina, continuava
invisível.
Enfim, apenas pelo fim da tarde, após os preparativos nos
quais Queequeg e eu participámos, o Pequod levantou ferro içou
as velas e fez-se ao largo. Era o dia 24 de Dezembro.
Quando caiu a noite - a noite de Natal! -, com um frio
glacial e cortante, estávamos já quase em pleno oceano.
À nossa volta, a espuma gelada formava sobre o mar uma
espécie de carapaça polida. À proa pendiam pedaços de gelo, e
os dentes de cachalote cravados no filerete cintilavam ao
luar.
Falei já de um certo Bulkington que encontrara na estalagem
de A-Baleia-que-Fuma, em New Bedford, na companhia de outros
membros da tripulação do Grampus. Qual não foi o meu espanto,
nesta dura noite de Inverno, enquanto a raivosa proa do Pequod
fendia as ondas perversas, ao vê-lo de pé, à barra! Um
momento, com receio e simpatia, contemplei aquele homem.
Poucos dias antes, regressara de uma viagem de quatro anos e,
sem sequer descansar, ei-lo que embarcava para uma nova
viagem, decerto tão longa e tão perigosa como a precedente! A
terra queimar-lhe-ia os pés? Não se cansaria nunca de
contemplar os oceanos, de atravessar as suas tempestades, de
se defrontar com os seus mistérios?
Mas é tempo de dizer algumas palavras acerca dos meus novos
companheiros. Starbuck, o imediato do Pequod, era de
Nantucket. Este homem, sério e grave, parecia, olhando a sua
carne tão dura como biscoito torrado duas vezes, perfeitamente
apto a viver em todas as latitudes. Que idade poderia ter? Não
mais de trinta anos, sem dúvida. Era magro como uma múmia e
muito avaro de palavras. Apesar de dotado de grande coragem,
não deixava de dizer: "A bordo da minha chalupa, só quero
homens que tenham medo das baleias." Porque dizia isto?
Provavelmente por achar que a verdadeira coragem se deve
apoiar num justo cálculo do perigo, e que um baleeiro de uma
intrepidez cega é mais perigoso do que um cobarde. 

32 33 

O primeiro-tenente chamava-se Stubb. Não era natural de
Nantucket, mas do cabo Cod. Despreocupado e tão longe da
cobardia como da bravura, não levantava problemas. No entanto,
em plena luta, trabalhava com tanta calma e sangue-frio como
um operário desempenhando a sua tarefa quotidiana. Sempre de
bom humor, dirigia a chalupa como quem dirige um barco de
recreio. Quando se encontrava muito perto da baleia
agonizante, servia-se da sua lança com uma indolência
implacável, como um caldeireiro martelando um caldeirão. E,
sem cessar, mesmo no auge do perigo, cantava, assobiava,
cantarolava velhas canções. A morte? Será que pensava nela?
Vivia na sua companhia há tantos anos!
Se Starbuck, o imediato, era de Nantucket e Stubb, o
primeiro-tenente, do cabo Cod, o segundo-tenente, de nome
Flask, era natural de Tilbury, na ilha de Marthas Vineyard.
Era um homenzinho vermelhusco e atarracado, de carácter
belicoso. Tratava as baleias como se o tivessem ofendido
pessoalmente e era para ele um ponto de honra destruir o maior
número possível delas. Inacessível a todo o sentimento de
respeito perante as suas massas colossais, afectava
considerá-las como ratos exageradamente inchados ou, melhor
ainda, como uma espécie de ratazanas-dágua, com as quais
bastava usar de um pouco de paciência e de astúcia, se se
queria ter a satisfação de as matar, de as despedaçar e de as
cozer. Ignorava o medo e pescava a baleia para se distrair.
Estes três oficiais - Starbuck, Stubb e Flask - eram pessoas
importantes a bordo, pois asseguravam o comando das três
baleeiras do Pequod. Armados de lanças reluzentes, formavam um
soberbo trio. Mas, à sua volta, gravitavam personagens não
menos importantes: os arpoadores.
Façamos agora um rápido esboço dos três arpoadores do
Pequod. Em primeiro lugar vem Queequeg, que Starbuck escolhera
para o ajudar. Porém, nós já conhecemos de longa data o meu
querido canibal.
O segundo arpoador era um indiano de pura raça, Tashtego,
natural de Gay Head, o promontório mais a oeste de Marthas
Vineyard. Tashtego, escolhido por Stubb para o ajudar na sua
tarefa, tinha cabelos negros e lisos, maçãs do rosto
salientes, olhos talhados em amêndoa, como os dos orientais, e
pupilas muito negras com um brilho gelado.
Imaginavam-se facilmente os seus antepassados, empunhando o
arco e perseguindo nas florestas americanas os alces ferozes e
outros animais selvagens. Mas, Tashtego renunciara a seguir a
pista dos animais terrestres, para seguir apenas o rasto das
baleias, os prodigiosos monstros marinhos, e era tão infalível
com o arpão como o tinham sido os seus antepassados com a
flecha.
Daggoo, o terceiro arpoador, era um negro gigantesco, escuro
como a noite. Tinha o andar leve e possante de um leão e usava
nas orelhas argolas tão grandes que os companheiros propunham,
rindo, utilizá-las para prender as driças do cesto da gávea.
Tendo levado durante longos anos a vida pura e corajosa dos
pescadores de baleias, conservava intactas as virtudes
bárbaras. Com perto de dois metros de altura, e direito como
uma girafa, ele percorria em passo majestoso as pontes do
Pequod.
Um outro negro encontrara também trabalho no Pequod.
Tratava-se do minúsculo Pip, um pobre preto do Alabama. Não
tardareis a vê-lo, no castelo da proa, servindo-se do seu
pequeno tambor para tocar uma espécie de prelúdio da
eternidade.....
Quanto ao resto da equipagem compunha-se de marinheiros
naturais de Nantucket, dos Açores ou das ilhas Shetland. Estes
insulares tinham tendência para viver isolados, cada um por
si, e formavam, à volta do personagem do qual vos vou, enfim,
falar, como que uma floresta de sombras activas e quase sempre
silenciosas.
Dias depois da nossa partida de Nantucket, ninguém vira
ainda o capitão Acab acima das escotilhas. Os oficiais faziam
o quarto por turnos. Podia pensar-se que eles eram os únicos
senhores a bordo. Contudo, de tempos a tempos, subiam da
cabina com ordens tão bruscas e tão autoritárias que eu acabei 

34 35

por me aperceber disto: eles limitavam-se a exercer o comando
por delegação. O senhor supremo e verdadeiro do Pequod
encontrava-se mesmo ali, encerrado num inviolável retiro.
Nos primeiros tempos, tivemos de suportar um frio quase
polar, apesar de, naturalmente, fazermos rota para o sul.
Porém, eu sentia que, cada vez que transpúnhamos um grau de
latitude, nos afastávamos do implacável Inverno.
Em suma, numa manhã menos rigorosa do que as precedentes,
mas ainda brumosa e escura, subi à ponte com a equipa de
quarto. Um bom vento impelia a grande carcaça do Pequod a um
andamento saltitante e rápido. De súbito, quando por hábito me
voltava para a armadoira de coroamento, não pude reprimir um
estremecimento. O capitão Acab encontrava-se ali, em pé, no
castelo de popa, e a realidade ultrapassava tudo o que eu
imaginara!
Nada, na sua pessoa, traía qualquer doença, nada nos levava a
pensar que estava convalescente. Tinha, sim, o ar de um homem
que, submetido à acção do fogo, tivesse sido retirado a tempo,
isto é, no momento em que as chamas começavam a lamber-lhe os
membros. O seu largo torso parecia ter sido moldado no mesmo
bronze que o Perseu de Benvenuto Cellini. Um traço lívido
serpenteava-lhe pelos cabelos grisalhos, descia ao longo de um
dos lados do rosto e do pescoço e desaparecia sob a camisola.
O que seria. Um sinal de nascença? Uma cicatriz resultante de
algum terrível ferimento?
Um instante, fiquei como que fascinado por aquele traço
lívido. Depois perguntei a mim próprio por que motivo o
capitão Acab afectava aquela atitude rígida, quase arrogante.
E, de súbito, compreendi. Não me tinham enganado: a perna
sobre a qual se apoiava era feita com marfim polido de um
maxilar de cachalote. Afirmavam que ele guardava na cabina
várias pernas de reserva, todas semelhantes àquela.
A sua estranha posição não deixou também de me surpreender.
Porém não tardei a notar que mandara fazer na ponte, junto
das peias para atracar a lancha, uns buracos à broca com a
profundidade de cerca de dois centímetros, nos quais fixava a
perna artificial. Para manter o equilíbrio, segurava-se com a
mão esquerda a uma das peias. Olhava a direito na sua frente,
para além da proa do navio. Não pronunciava palavra. Os
oficiais movimentavam-se em silêncio à sua volta, mostrando
pela sua expressão que não ignoravam os tormentos que afligiam
o seu chefe. Com efeito, o taciturno Acab parecia trazer no
rosto o reflexo de uma angústia devoradora...
Após esta primeira aparição, voltou para a cabina. Mas
depois, como o tempo ia melhorando de dia para dia à medida
que nos aproximávamos do equador, voltámos a vê-lo todos os
dias no castelo da popa e depois, em breve, quase todas as
noites.
A partir do momento em que os quartos ficavam distribuídos e
a equipa de ponte velava pelo sono da equipa de baixo, o
timoneiro via de súbito emergir lentamente, da sua escotilha,
o velho mutilado. A maior parte do tempo, sem dúvida para não
incomodar os seus oficiais que dormiam mesmo por baixo dele, o
capitão Acab ia sentar-se no sítio do costume, num banco
feito, como a sua perna, de um maxilar de cachalote.
Mas, uma noite, provavelmente mais angustiado do que de
costume, no seu passo mais pesado que o de um urso, pôs-se a
passear pela ponte, do castelo da popa ao mastro grande.
Stubb, impedido de dormir, deixou o leito, subiu por sua vez à
ponte e, aproximando-se do capitão Acab, disse-Lhe,
esforçando-se por aparentar um tom despreocupado:
- Claro, capitão, que ninguém pode impedi-lo de passear se
lhe apetece. No entanto, talvez houvessse um meio de fazer
menos barulho... Podia, por exemplo, pôr um tampão de estopa
na sua perna de marfim...
Pobre Stubb! Não conhecias ainda o temível Acab.
- O quê? - bramiu o capitão. - Sou alguma bala de canhão
para me quereres assim enfiar uma bucha? Ora vamos, deixa-me
em paz! E volta para a tua casota, cão! 

36 37 

Stubb, estupefacto, ficou um momento de boca aberta. Depois,
recompondo-se, replicou:
- Saiba, capitão, que não estou habituado a ser tratado
dessa maneira!
- Põe-te andar! - resmungou Acab.
Depois voltou as costas e começou a afastar-se. Temeria as
explosões da sua própria cólera?
Porém Stubb, enchendo-se de coragem, embargou-lhe o passo.
- Fique sabendo, capitão, não permito que me chame cão...
- Se assim é, posso chamar-te azêmola, asno, rocim! E agora,
vai-te! Senão, livro o universo da tua presença!
E, assim dizendo, após ter dado bruscamente meia volta,
avançou para o seu primeiro-tenente com uma expressão tão
assustadora que este, num movimento involuntário, recuou,
depois desceu precipitadamente a escotilha que conduzia à sua
cabina.
Quando Stubb desapareceu, Acab ficou um momento debruçado
sobre o filerete. Após o que, como o fazia quase todas as
noites há alguns dias, mandou um dos marinheiros procurar o
seu banco de marfim e o cachimbo. Acendeu o cachimbo no
candeeiro da bitácula, instalou o banco na ponte, do lado
exposto ao vento, sentou-se e pôs-se a fumar.
Passados alguns instantes, depois de ter puxado umas fumaças
que o vento lhe atirava para o rosto, começou a murmurar:
- Como é possível que o tabaco já não me acalme? Ó querido
cachimbo, como vai ser difícil o caminho se o teu encanto já
não produz em mim qualquer efeito! Tu enchias-me de paz, de
serenidade... Mas estou a ver que te tornaste inútil... Pois
bem, sendo assim, não voltarei a fumar!
Atirou o cachimbo ao mar e, erguendo-se, pôs-se de novo a
passear na ponte. De tempos a tempos, para não se
desequilibrar, tinha de se agarrar ao cordame.
Na manhã seguinte, Stubb disse a Flask: 

38  

- Se soubesses o que me aconteceu! Tive um sonho, ou antes
um pesadelo. O velho e eu estávamos a discutir. E eis que ele
me dá um pontapé com a perna de marfim!
Quero ripostar. Levanto a perna direita e vejo que ela se
desprende do corpo! Que pensas disto?
- Ora... Parece-me bastante ridículo...
- Não, Flask, não é ridículo. É uma advertência para todos
nós. Estás a ver o capitão ali à popa? Olha fixamente o largo.
Pois muito bem, vou dar-te um conselho: deixa-o em paz, não
repliques nunca, diga-te ele o que disser... Mas escuta! Ele
está a gritar!
Com efeito, o capitão Acab gritava:
- Eh! Lá em cima, o vigia! E vocês todos mexam-se. Há
baleias nestas paragens! Se virem uma branca, berrem até fazer
estalar os pulmões!
Stubb fixou Flask.
- Então, Flask, qual a tua opinião? Esquisito, não achas?
Ouviste aquilo? Uma baleia branca! Estás a ver? Palavra de
honra, fica fora de si... Mas, chiu! Ei-lo. 

39 

V 

TODOS À POPA! 

Uma manhã, pouco depois do pequeno-almoço e alguns dias
depois do episódio do cachimbo, o capitão Acab, como era seu
hábito, saiu da cabina e subiu à ponte. Logo, erguendo a
fronte enrugada, onde cada vez mais se notava a marca de uma
ideia fixa, fez ressoar as tábuas sob o seu passo firme e
duro.
- Estás a ver, Flask? - murmurou Stubb ao ouvido do
segundo-tenente. - Aquilo mexe-lhe com os miolos. Não tarda
que o pinto que lá está dentro parta a casca!
Passaram assim algumas horas. Muitas vezes, Acab voltou para
a cabina e subiu de novo para a ponte. Mas a sua expressão
permanecia de um fanatismo exaltado.
Ao entardecer parou perto do filerete, meteu a perna de
marfim no buraco que estava mais próximo dele, agarrou-se com
uma das mãos a uma peia e ordenou a Starbuck, seu imediato:
- Junte toda a gente à popa.
- Como, capitão? - disse Starbuck, julgando ter ouvido mal,
pois aquela ordem só era dada em circunstâncias excepcionais.
- Todos à popa! - repetiu Acab. - E vocês, aí em cima, os
vigias, desçam!
Os homens da equipagem agruparam-se na sua frente. 

40

Cada um deles o olhava com um misto de receio e surpresa. Pois
não tinha ele o ar de uma nuvem de tempestade? Lançou um
rápido olhar aos marinheiros. Depois, de mãos atrás das
costas, cabeça inclinada para a frente, pôs-se a caminhar
pesadamente pela ponte. Por fim, parando de súbito e
levantando a cabeça, perguntou em voz forte:
- Vejamos, rapazes, que fazem vocês quando vêem uma baleia?
- Damos sinal dela! - respondeu a maior parte dos
assistentes.
- Muito bem - disse Acab. E aproveitando a atenção
silenciosa que lhe prestavam, ajuntou logo: - E depois, o que
fazem?
- Lançamos as lanchas ao mar e perseguimo-la!
- E ao som de que cantiga é que vocês remam?
- Ao som desta: 

Ou ela ou a gente!
Se ela não estoirar,
Vamos nós ao ar!
É-nos indiferente! 

Com uma expressão de satisfação selvagem, o velho marinheiro
voltou para o seu buraco feito à broca, agarrou-se de novo a
uma das peias e tornou, em voz vibrante:
- Vigias, é a vocês em especial que agora me dirijo!
Lembram-se, não é verdade, das ordens que dei a propósito da
baleia branca? Pois bem - acrescentou ele, levantando acima da
cabeça um objecto brilhante -, vêem esta moeda de ouro
espanhola, este dobrão! Vale dezasseis dólares!
Depois, voltando-se para Starbuck:
- Dê-me aquele maço que está além!
Quando Starbuck executou a sua ordem, o capitão Acab
aproximou-se do mastro grande, brandiu o maço com uma das mãos
e prosseguiu na mesma voz vibrante, continuando a mostrar a
moeda de ouro: 

41 

- Esta moeda virá a pertencer àquele de entre vós que me
assinalar primeiro uma baleia branca de testa enrugada, de
maxilares à banda, com três buracos a estibordo da cauda!
E, dizendo estas palavras, pregou a moeda na madeira do
mastro. Entusiasmados, os marinheiros gritavam a cada pancada
do maço:
- Hurra! Hurra! Hurra!
Terminada a operação, Acab atirou o utensílio para a ponte e
concluiu nestes termos:
- Ouviram bem, rapazes? Uma baleia branca! Estoirem os olhos
para a encontrar! Preciso absolutamente dela!
Neste momento, Tashtego, o índio, avançou um passo e disse:
- Essa baleia de que fala, capitão, não é aquela a que
alguns chamam Moby Dick?
- É Moby Dick! - bramiu o velho marinheiro. - Então tu
conhece-la? Conheces mesmo a baleia branca, Tashtego?
- Talvez, capitão, se é aquela que põe a cauda em leque
antes de mergulhar!
- E, se não me falha a memória - interveio Daggoo, o negro
gigantesco -, tem um jacto curioso, rápido, possante e
espesso. Não é, capitão?
Foi então que Queequeg, por sua vez, avançou um passo.
- E ela ter muitos arpões na pele, não é, capitão. -
perguntou ele. - Arpões torcidos como... como...
- Como saca-rolhas! - gritou o capitão. - Sim, Queequeg, os
arpões torcem-se no corpo dela como saca-rolhas...
Quanto a ti, Daggoo, tens razão: o seu jacto é mais rápido,
mais poderoso, mais espesso que o de qualquer outra baleia!
E tu também, Tashtego, tens razão: quando ela se agita
parece uma vela rasgada estalando durante uma tempestade.
Inferno e danação, rapazes, foi mesmo Moby Dick que vocês
viram, é mesmo Moby Dick que conhecem! Moby Dick.
Moby Dick!
Os três oficiais de bordo não tinham parado de contemplar o
seu chefe com crescente surpresa. Starbuck afastou-se do
pequeno grupo. 

42 

- Capitão - disse ele com o ar de um homem a quem acaba de
acudir uma ideia -, não foi Moby Dick que lhe cortou a perna?
- Quem te disse isso? - bramiu Acab.
Em seguida, dominando-se:
- Sim, Starbuck! Sim, rapazes, foi Moby Dick que me pôs
assim! Sim, é a Moby Dick que eu devo este coto sobre o qual
agora me apoio! Sim, foi essa maldita baleia branca que fez de
mim, para o resto da vida, uma espécie de marinheiro de água
doce!
E erguendo ao céu os braços trémulos:
- Mas eu persegui-la-ei por toda a parte: no cabo da Boa
Esperança, no cabo Horn, no Maelstrõm da Noruega... Até ao
Inferno se for preciso! Jamais renunciarei a dar cabo dela!
Foi para isso que vocês todos embarcaram comigo! Matá-la-emos
juntos! Quero vê-la esguichar sangue negro pelos orifícios!
Quero vê-la de barriga para o ar! Persegui-la-emos até aos
confins da terra! Que dizem a isto, rapazes? Estão de acordo?
Vocês parecem-me tipos corajosos!
- E havemos de dar-lhe prova disso, capitão! - gritaram em
conjunto marinheiros e arpoadores. Juntavam-se cada vez mais
em redor do velho marinheiro exaltado.
- Deus vos abençoe! - respondeu Acab, com a voz embargada
pelos soluços. - Tragam uma boa porção de rum! Vamos beber à
morte de Moby Dick!
Reparando que Starbuck parecia fechar-se num silêncio
mal-humorado, perguntou-lhe:
- O que é que tem? Porquê esse ar lúgubre? A baleia branca
mete-lhe medo?
- Não, capitão - respondeu o imediato -, nem Moby Dick nem a
morte me metem medo. No entanto, acompanhei-o nesta viagem
para pescar quaisquer baleias... E não para me tornar no
instrumento da sua vingança. De resto, não compreendo que
procure vingar-se de um animal talvez cruel, mas que se
limitou a obedecer ao seu instinto. É normal matar um animal
cuj a carne nos é indispensável. Persegui-lo encarniçadamente
é não só loucura, mas um grande pecado! 

43 

O capitão Acab fixou durante alguns instantes Starbuck com
um olhar profundo. Depois respondeu-lhe quase em voz baixa:
- Há muitas coisas que você ignora. Os objectos que nos
rodeiam, os objectos visíveis, não são mais que máscaras de
cartão. Porém, em cada acontecimento, no indiscutível acto de
viver, há o desconhecido, um desconhecido que raciocina,
enquanto a máscara, essa, não raciocina. E o homem não pode
actuar senão através da máscara! Como pode um prisioneiro
evadir-se da sua cela sem destruir o muro? Pois bem, a baleia
branca é esse muro. Eis porque quero destruí-la. Por vezes
acontece-me pensar que por trás dela, por trás deste muro, por
trás desta máscara de cartão, não há nada. Não importa! Moby
Dick obceca-me. Vejo nela uma força que me injuria, uma
crueldade insondável. O insondável, eis o que eu odeio, o que
quero atingir! Não me diga que cometo um pecado
encarniçando-me contra Moby Dick. Aniquilaria também o Sol se
ele me injuriasse. Porque, o que o Sol pode fazer, sei que
também eu posso fazê-lo!... Starbuck, você ora fica vermelho
de cólera ora pálido como um morto. Mas veja estes homens da
equipagem! Estão todos de acordo comigo. Compreenderam-me. E
você também, Starbuck, concorda comigo, no fim de contas, não
é verdade? Sim, sim. Sinto que consegui insuflar-lhe a minha
vontade.
Baixando a cabeça, Starbuck murmurou:
- Deus nos preserve a todos...
Porém Acab, entregue ao prazer de ter estabelecido entre a
equipagem e a sua pessoa uma espécie de harmonia diabólica,
não ouviu esta invocação desesperada. Já não ouvia nada: nem
os estalidos do casco do Pequod, que lembravam gargalhadas
sufocadas de um riso sardónico, nem o sibilar profético do
vento no cordame, nem o bater das velas contra a mastreação.
- O rum, o rum! - gritou.
Depois de o steward lhe ter levado um grande jarro de
estanho cheio de rum até à borda, acrescentou:
- Os arpoadores serão servidos em primeiro lugar, pois são
os verdadeiros senhores da festa. Queequeg, Tashtego, Daggoo,
aproximem-se! Depois, os oficiais! Starbuck, Stubb, Flask,
aproximem-se também! Tirem os ferros dos cabos dos arpões e
das lanças... Muito bem. E agora orientem a ponta para baixo.
Isso mesmo!
Depois de encher de rum os ferros dos arpões e das lanças,
continuou:
- Brindem com estes cálices mortíferos, depois bebam-nos de
um trago. E agora jurem: que Deus nos fulmine se não
perseguirmos Moby Dick até aos confins do universo!
Às aclamações da equipagem, arpoadores e oficiais ergueram
os ferros das suas lanças e levaram-nos aos lábios. Após ter
esvaziado o seu, Starbuck, muito pálido, voltou costas e
afastou-se tremendo. O capitão Acab olhou os marinheiros
passando uns aos outros o jarro de rum. Em seguida, após
tê-los saudado com um sinal da mão, dirigiu-se para a
escotiLha e desceu à cabina.
Se tivéssemos seguido o capitão até à sua cabina,
tê-lo-íamos visto aproximar-se de uma arca, levantar a tampa e
retirar de lá um rolo de cartas de marear amarelecidas e
amachucadas. Desdobrou-as na sua frente, sobre uma mesa cujos
pés estavam atarrachados ao chão. Em seguida, depois de se ter
sentado, estudou-as atentamente e, com mão firme, traçou a
lápis algumas linhas nas zonas ainda em branco. Por vezes,
erguia a cabeça, pegava num velho livro de bordo e
consultava-o para se certificar de alguns locais onde os
navios de outrora tinham assinalado ou capturado cetáceos,
baleias ou cachalotes.
Assim, quase todas as tardes, quase todas as noites, o
capitão Acab ficava debruçado sobre as suas cartas, apagando
algumas linhas, substituindo-as por outras. E, pouco a pouco,
ia apertando, cada vez de mais perto, o objectivo que, na sua
loucura, jurara atingir. 

44 45 

Após assim ter trabalhado até muito tarde, murmurava,
passando a mão pela testa: "Vou apertando o cerco cada vez
mais! Escapar-me-á. Não, é impossível! As suas enormes
barbatanas estão todas furadas, rendadas, como a crista de uma
onda extraviada..."
Então, a sua imaginação delirante arrastava-o para loucas
corridas que o levavam aos quatro cantos do planeta, de tal
modo que, esgotado e prestes a desfalecer, se via forçado a
subir à ponte a fim de recobrar as forças, respirando por
alguns instantes o ar vivificante do largo. Feliz aquele cujo
sono, sem nada a perturbá-lo, corre como um sereno ribeiro. O
capitão Acab, esse, obcecado pelo desejo de tirar uma
retumbante vingança da baleia branca, dormia de punhos
cerrados e já nem se admirava quando, ao acordar, via as unhas
cravadas até ao sangue nas palmas das mãos.
Por vezes, expulso do leito por pesadelos de um realismo
alucinante, surgia bruscamente da cabina como se esta
estivesse a arder e punha-se a correr pela entrecoberta,
soltando bramidos que aterrorizavam toda a tripulação.
Tinha, no entanto, momentos de fria lucidez. Foi durante um
destes momentos que, ao contrário do costume segundo o qual o
capitão de uma baleeira não participa nas operações de pesca,
escolhera para si a quarta baleeira, a que balançava a
estibordo, junto do castelo da popa. E não só ficara com ela,
mas constituíra para esta baleeira uma equipagem de cinco
homens de cor, dirigidos por um certo Fedallah. Este
personagem, do qual eu não notara a presença no dia da nossa
partida, parecia feito das brumas do mar. De elevada estatura,
usava uma espécie de túnica chinesa de um negro tão fúnebre
como o seu rosto, e um turbante imaculado que nunca tirava. Só
ao fim de algum tempo descobri que não se tratava de um
turbante, mas das suas tranças brancas enroladas à volta da
cabeça.
Tudo isto - esta baleeira, esta misteriosa tripulação -,
provava que o capitão Acab tinha realmente a intenção de
contribuir, por suas mãos, para o aniquilamento de Moby Dick. 

46 

VI 

O JACTO FANTASMA 

Os dias e as semanas iam passando sem qualquer incidente
notável. Avançando a boa velocidade, o Pequod sulcara o
Atlântico em todos os sentidos, dos Açores a Santa Helena, de
Santa Helena à embocadura do rio da Prata, da embocadura do
rio da Prata até a essa zona bastante vaga, situada a sul de
Santa Helena e chamada Carrol Ground.
Foi nas águas do Carrol Ground, numa noite calma e luminosa,
uma noite apenas perturbada pelo rolar das vagas, que um dos
vigias avistou de súbito, mesmo na nossa frente e a pouca
distância do borbulhar da nossa roda de proa, um jacto
prateado iluminado pelos raios da Lua. Dir-se-ia um deus
cintilante, com um capacete de plumas brancas, emergindo das
profundezas do mar. Foi Fedallah o primeiro a assinalar a sua
presença. Nas noites claras, com efeito, ele tinha o costume
de trepar para o cesto da gávea e dali vigiar toda a
superfície visível do Atlântico. Quando os homens da
tripulação o ouviram gritar: "Além! Olhem! Ela está a
soprar!", foi como se acabassem de ouvir os acordes
triunfantes da trombeta do Juízo Final. E todos desejaram que
se aproveitasse aquela ocasião para lançar enfim as baleeiras
ao mar.
Passados dois segundos, o capitão Acab surgia na ponte. 

47 

Com o seu passo rápido e martelado, dirigiu-se para o
castelo da popa e ordenou que desfraldassem todas as velas.
Mandou para a barra o melhor timoneiro de bordo, enviou vigias
suplementares para os outros postos de observação. Impelido
por um vento bastante forte, o Pequod avançou rápido sob as
estrelas, num silêncio apenas quebrado pelo ruído produzido
pelo capitão martelando a ponte com a sua perna de marfim. No
entanto, nessa noite ninguém voltou a ver o jacto prateado.
Porém todos os marinheiros estavam prontos a jurar que o
tinham visto.
No dia seguinte, à mesma hora, os vigias assinalaram-no de
novo. Todos puderam contemplá-lo durante bastante tempo. No
entanto, quando se dirigiram para ele, ela volatizou-se como
da primeira vez. E, noite após noite, isto repetiu-se: o jacto
fantasma erguia-se de súbito sobre as ondas e quase de seguida
dissipava-se, como um sonho. Alguns quiseram deixar de lhe
prestar atenção. Mas a maior parte continuava a interrogar-se
sobre o assunto. E todos, sem nada dizermos, tínhamos a
impressão de que ela procurava intrigar-nos, arrastar-nos para
mais longe, talvez atrair-nos para alguma incompreensível
armadilha.
Pouco a pouco, as nossas imaginações iam-se tornando presas
de um estranho trabalho. Alguns de nós, depois de procurar na
memória, julgaram poder declarar:
- É tal qual como me disseram, trata-se de Moby Dick! Parece
que de cada vez que se avista este jacto, em qualquer
latitude, vale mais não o seguir, se não quisermos perder-nos
e morrer em oceanos ainda mais longínquos, ainda mais
selvagens do que este...
Apoderara-se de nós um medo vago, mas tenaz. E este pavor
aumentou ainda quando ouvimos bramir as tempestades do Cabo e
fomos sacudidos por vagas enormes e tumultuosas. Agora, o
Pequod, sempre voluntarioso e arrebatado, afrontava a
tempestade, inclinando-se sob os seus violentos ataques.
Durante todo o dia a ponte era invadida por rolos de espuma
esbranquiçada. 

48 

Todas as manhãs, nuvens de corvos do mar voavam à volta dos
nossos mastros e pousavam nas vergas, onde, apesar das nossas
ameaças, continuavam empoleirados, considerando sem dúvida o
nosso navio como um destroço já à deriva.
Sob os nossos olhos, o oceano ofegava, à maneira de um ser
angustiado e atormentado pelo remorso.
Cabo da Boa Esperança, assim se diz hoje... Porque deixaram
de lhe chamar, como outrora, e a justo título cabo das
Tormentas?
Durante todo o tempo em que os elementos nos foram
desfavoráveis, o capitão encarregou-se do comando. Mais
taciturno ainda do que de costume, mal dirigia a palavra aos
seus oficiais. Com a perna de marfim cravada no buraco de
broca, com a mão apoiada numa das peias, ficava horas inteiras
imóvel, de olhar fixo na sua frente, e as pestanas carregadas
de neve ou de granizo.
O que ele via sempre, sonhando acordado, era a cena
obsessiva, no entanto já com vários anos, em que afrontara a
baleia branca num formidável corpo a corpo. Saltando da
baleeira despedaçada, lançara-se sobre o monstro e procurara
atingi-lo no coração. Porém, voltando de súbito a sua bocarra
em forma de foice, o monstro arrebatara-lhe uma perna tão
facilmente como um ceifeiro ceifa uma espiga de trigo no
campo. Não era então de espantar que o capitão Acab votasse a
Moby Dick um ódio de morte. Cego pelo desespero, chegara ao
ponto de identificar a baleia branca com os seus sofrimentos
físicos e morais. Encarnava para ele o mal que devora alguns
homens até lhes deixar apenas um pouco de coração ou de
pulmão, um mal que, aos olhos dos cristãos, possui a maior
parte dos seres e que a humanidade detesta desde Adão. Apesar
da idade e da doença, jurara aniquilá-la...
A sudeste do cabo da Boa Esperança e ao largo das longínquas
ilhas Crozet, isto é, numa zona particularmente favorável aos
pescadores de baleias, avistámos um dia a alta silhueta de um
veleiro, o Albatroz.  

49 

Empoleirado, nesse dia, no posto de observação do mastro de
traquete, fui um dos primeiros a poder contemplar - o
espectáculo emocionante para o noviço que eu era então - uma
baleeira que não via o seu porto há muito tempo e navegando ao
largo.
Tinha o aspecto de um esqueleto de morsa. Nos seus flancos,
que a acção das vagas desbotara, a ferrugem desenhara longos
traços amarelados. As antenas e a enxárcia pareciam ramagens
cobertas de geada. Trazia apenas as velas inferiores
desfraldadas. Quanto aos marinheiros, empoleirados como vigias
nos postos de observação dos seus três mastros, formavam um
curioso quadro, com as vestimentas em farrapos e as barbas
desgrenhadas.
Quando o Albatroz passou muito perto da popa do nosso barco,
uma voz - a do capitão Acab - elevou-se de súbito do castelo
da popa:
- Oh! Gente do navio! Viram a baleia branca?
O capitão do Albatroz aproximou-se do filerete, ergueu o
porta-voz e, sem dúvida por desastramento, deixou-o cair ao
mar. No entanto respondeu à pergunta feita por Acab. Mas as
suas palavras foram levadas para longe pelo vento, enquanto o
navio se afastava progressivamente do nosso. O capitão Acab
parecia reflectir. Iria lançar um escaler à água? No entanto,
renunciando a esta ideia, pegou por sua vez no porta-voz e
gritou:
- Eh! Vocês aí! Eu conheço-os. São de Nantucket. Aqui, o
Pequod! Andamos a dar a volta ao Mundo. Remetam as nossas
cartas para o oceano Pacífico! E, se não estivermos de volta
dentro de três anos, digam às nossas famílias que nos escrevam
para...
Neste instante os dois sulcos confundiram-se e - facto
surpreendente - os peixes que, há dias e dias, seguiam em
cardumes cerrados ao longo dos nossos flancos, deixaram-nos
bruscamente e foram amontoar-se atrás do Albatroz.
Acab - nada escapava àquele diabo de homem! - inclinou-se
sobre o varandim e murmurou, como se visse um sentido neste
facto:
- Então vocês abandonam-me? Vocês abandonam-me!
Ele, de costume tão violento, tão autoritário, falara com
uma entoação de profunda tristeza. Porém, recobrando logo o
seu tom imperioso, voltou-se para o timoneiro, que até ali
tinha manobrado para reduzir a velocidade, e ordenou-lhe:
- Deixe andar! E a caminho para a volta ao Mundo!
Meia hora mais tarde, o Albatroz desaparecia no horizonte,
enquanto cada um de nós, com uma surpresa mesclada de
apreensão e orgulho, repetia no seu foro íntimo: "A volta ao
Mundo! A volta ao Mundo!..."
Nos dias que se seguiram, o Pequod afastou-se das ilhas
Crozet para nordeste, em direcção a Java. Atravessava
continuamente várias extensões de brit, essa substância
amarela que flutua à superfície das águas e que é o principal
alimento das baleias. Os seus três mastros balançavam
molemente ao sabor da leve brisa que o impelia a um andamento
regular. E, quase todas as noites, os vigias continuavam a
assinalar, solitário e misteriosamente atraente, o jacto
prateado... 

Uma manhã, mais transparente e mais azul ainda do que as
precedentes, Daggoo, que se encontrava no posto de observação
do mastro grande, avistou ao longe uma massa branca que se
afundou pouco a pouco. Depois reapareceu a reluzir como uma
colina de neve.
"É Moby Dick?", perguntava de si para si o arpoador.
E, como a massa branca voltava a passar, não se conteve sem
gritar:
- Além! Além! A direito, em frente! É a baleia branca! A
baleia branca!
Imediatamente, todos os marinheiros se precipitaram para as
vergas. De cabeça descoberta, apesar do sol ardente, o capitão
Acab subiu ao gurupés. Depois, após um exame de segundos, deu
ordem para lançar os escaleres ao mar. Julgaria, também ele,
encontrar-se na presença de Moby Dick?
Passados instantes, as quatro baleeiras com a do capitão à
frente, lançavam-se sobre a sua presa. Pouco a pouco, a massa
branca tornava-se mais precisa. Não tinha cabeça, 

50 51

nem barbatana. Mas do centro desta massa irradiavam braços
imensos que se torciam como serpentes e pareciam prestes a
devorar tudo o que se apresentasse ao seu alcance. Este
monstro informe tinha sem dúvida sentido a nossa aproximação,
pois, com um surdo ruído de sucção, deixou-se de novo afundar
e não voltou a aparecer. Olhando para o turbilhão formado no
sítio onde ele mergulhara, Starbuck declarou:
- Preferia ter combatido com Moby Dick a ter-te visto,
maldito fantasma branco!
- O que era aquilo? - perguntou Flask.
- Era o grande squid, o grande cornudo dos mares quentes -
respondeu Starbuck. - Dizem que os barcos que o encontram não
voltam nunca mais ao seu porto...
O capitão Acab, esse, não dizia palavra. Depois de ter
virado a sua baleeira, voltou para o Pequod. Nós seguimo-lo em
silêncio.
Se, para Starbuck, a aparição do squid era um mau presságio,
não me parecia que para Queequeg o fosse.
- Quando vocês ver squid - disse ele pousando o arpão na
frente da baleeira -, quando ela vir para bordo, vocês ver
logo cachalotes e baleias. 

No dia seguinte, o tempo estava calmo e abafado. Sem nada
que fazer, os marinheiros do Pequod dificilmente resistiam ao
sono. É preciso ver que vogávamos agora no oceano Índico, isto
é, que atravessávamos uma das superfícies líquidas menos
animadas, mais enfadonhas, do globo terrestre.
Eu estava de vigia no mastro de traquete. Encostado à vela
bamba da vela do cimo e embalado pelo movimento leve e
ondulante do navio, pus-me a devanear, depois fechei os olhos.
Mas, de súbito, tive a impressão de que estalavam bolhas sob
as minhas pálpebras fechadas. Alcançando as peias mais
próximas, agarrei-me a elas com todas as forças. Porque
milagre acordara no momento em que ia ser talvez projectado no
vácuo? Sacudi-me, abri os olhos... E avistei, muito perto de
nós, a menos de quarenta braças, um gigantesco cachalote, 

52 53

que corria nas vagas, lançando de tempos a tempos um jacto de
água vaporizada que o fazia assemelhar-se a qualquer gordo
burguês fumando tranquilamente o seu cachimbo ao sol. Um
instante mais tarde toda a equipagem estava em ebulição.
- Baleeiras ao mar! - gritou o capitão Acab.
Depois, afastando o timoneiro com um gesto, deu ele próprio
uma violenta guinada para estibordo.
Alertado sem dúvida pelos nossos gritos, o cachalote
descreveu uma curva majestosa e afastou-se para sotavento. O
capitão ordenou-nos que não falássemos. Então, instalámo-nos
em silêncio nas quatro baleeiras e lançámo-nos em perseguição
do monstro. Bruscamente, este ergueu a cauda, agitou-a no ar a
uma altura de cerca de quarenta pés e mergulhou. Dir-se-ia uma
flecha de igrej a engolida por uma vaga monstruosa.
Aproveitando a trégua que assim nos era concedida, Stubb
tirou o cachimbo do bolso e acendeu-o. Passado o tempo normal
do mergulho, o cachalote reapareceu à frente da baleeira
comandada pelo fumador, e bastante afastada das outras três. A
partir deste instante, o primeiro-tenente pensou:
"Este é meu!"
E dirigindo-se aos companheiros:
- Sigam-no, sigam-no, rapazes! Mas não se apressem
demasiado. Tu, Tashtego, não percas o sangue-frio! Vais ver
que as coisas se vão passar o melhor possível!
Enquanto falava tirava do cachimbo fumaça após fumaça.
- Hu, hu!
Tratava-se do índio, que, para responder ao
primeiro-tenente, soltava o grito de guerra da sua tribo.
- Hi, hi! - gritou Daggoo da baleeira ao lado.
- Ka-la! Ku-lo!
Desta vez era Queequeg que, naturalmente, se encontrava
comigo na minha baleeira.
As quatro embarcações saltavam, baloiçavam, fendiam as
ondas. De súbito, Stubb endireitou-se e gritou: 

54 

- É a tua vez, Tashtego!
Depois de o índio ter lançado o arpão, o primeiro-tenente
acrescentou:
- Agora, rapazes, recuem como puderem!
Os remadores pararam, ergueram os remos e, em conjunto,
começaram a andar em sentido contrário.
Então Stubb pôs-se a desenrolar a linha fixa a um robusto
cilindro. E, no momento em que a baleeira era arrastada a uma
velocidade que aumentava de segundo a segundo, o
primeiro-tenente e o seu arpoador trocaram de lugar, isto é
Stubb foi para a frente, enquanto Tashtego se sentava junto do
cilindro.
A linha esticava, esticava cada vez mais. A baleeira já não
deslizava sobre as ondas: voava!
Enfim, passado algum tempo, o cachalote diminuiu o
andamento.
- Firme! Firme, rapazes! - bradou Stubb.
Habilmente virou e foi colocar-se junto ao flanco do
cachalote e, apoiando o joelho no rebordo, brandiu a lança e
pôs-se a atacar o cetáceo com golpes sucessivos. A cada uma
das suas ordens, a baleeira recuava, para não ficar presa nos
remoinhos provocados pelo monstro. No instante seguinte sempre
à voz de comando, ela voltava à carga.
Ribeiros vermelhos começavam a correr ao longo do corpo do
enorme animal e tingiam a água já avermelhada pelos raios
oblíquos do Sol poente. Um vapor branco brotava sem cessar dos
seus orifícios... À cadência das fumaças tiradas do cachimbo
do primeiro-tenente.
- Mais perto! Mais perto! - bramiu Stubb, brandindo de novo
a lança.
Desta vez a baleeira ficou completamente encostada ao flanco
da prodigiosa massa de carne agonizante. Stubb mergulhou ali a
lança com uma energia sobre-humana. Atingido enfim no coração,
o cachalote rolou sobre si próprio com tanta violência que,
mais uma vez, a baleeira teve de recuar.
Depois as suas temíveis convulsões tornaram-se mais
espaçadas e mais lentas. Quando cessaram por completo, Daggoo
numa baleeira ao lado, disse a Stubb: 

55 

- Está morto!
- Pois está - respondeu o primeiro-tenente. - Acabou de
fumar o seu cachimbo! E eu também, aliás...
E, tirando o cachimbo da boca, espalhou as suas cinzas nas
ondas, contemplando com um ar pensativo o formidável cadáver
que acabara de fazer.
Atrelando três baleeiras em fila, começámos a rebocar o
nosso troféu. Éramos dezoito homens aos remos, isto é, trinta
e seis braços ou, se se preferir, cento e oitenta dedos. No
entanto, precisámos de várias horas para cobrir a distância
que nos separava do Pequod.
Caiu a noite. Três lanternas de bordo, colocadas a
diferentes alturas num dos mastros do navio, iluminavam a
nossa marcha. Por cima do filerete baloiçava-se outra. Ao
aproximarmo-nos, verificámos que quem a segurava era o próprio
capitão Acab. Com o olhar vazio, fixou por uns segundos o
cachalote, deu ordem para o acondicionarem para a noite e,
depois de ter dado a lanterna a um marinheiro que estava mais
perto dele, dirigiu-se para a escotilha. Só na manhã seguinte
voltaria a aparecer.
Enquanto durara a perseguição, despendera a actividade
habitual. Mas, agora que o cachalote estava morto, aparentava,
pela sua atitude, uma espécie de descontentamento: "Tudo isto
está muito bem! Mas, ainda que me trouxessem mais cem
cachalotes ou baleias, nada mudaria, visto que Moby Dick
continua viva."
Não tardou que os marinheiros lançassem pelo rebordo pesadas
correntes. Meia hora mais tarde, o cachalote estava
solidamente amarrado ao longo do navio, com a cauda para a
proa e a cabeça para a popa como era o costume. Na escuridão
da noite, o Pequod e a sua presa tinham o ar de dois bois
colossais sob a mesma canga.
A seguir, Stubb, após ter comandado esta operação do
princípio ao fim, aproximou-se de Daggoo e disse-lhe com um ar
alegre, pois ainda estava sob a embriaguez da vitória:
- Salta por cima do filerete e vai-me cortar uma fatia dele,
uma boa fatia, na cauda! 

56 

Importa sublinhar que o primeiro-tenente, como muitos
pescadores de Nantucket, era um bom apreciador da carne tenra
dos cetáceos, sobretudo quando esta era proveniente da parte
que ele indicara.
À meia-noite, a fatia encontrava-se não só cortada, mas
cozida. À luz de duas lanternas, Stubb, utilizando o
cabrestante como mesa, começou a comer regaladamente. No
entanto, nessa noite, não foi ele o único a comer cachalote.
Centenas de tubarões comprimiam-se em volta do colosso morto e
arrancavam-lhe pedaços de pele e de toucinho. Cada vez que as
suas maxilas estalavam ou as caudas chicoteavam o casco do
navio, os marinheiros deitados na entrecoberta estremeciam. E
os vigias podiam distinguir de vez em quando os carnívoros do
mar revirando-se na água negra para arrebatar mais facilmente
do corpo do vencido pedaços redondos cuja forma e tamanho
lembravam os de uma cabeça humana. 

57 

VII 

FUNERAL DE UM CACHALOTE 

No dia seguinte era domingo. Porém, os nossos muitos
afazeres não nos deixaram observar o descanso dominical. Desde
o alvorecer, o Pequod transformou-se num imenso matadouro, e
todos os marinheiros em magarefes. Dir-se-ia que estávamos
sacrificando dez mil touros aos deuses do mar!
Em primeiro lugar foi içado e solidamente fixo ao mastro um
feixe de roldanas. Depois, por uma destas roldanas passou-se
um robusto cabo, do qual pendia o gancho do toucinho e cuja
outra extremidade estava ligada a um guindaste. Terminados os
preparativos, Stubb e Starbuck, debruçados no filerete,
fizeram com as lanças, no corpo do cachalote, um buraco
suficientemente grande para lá caber o gancho. Logo que este
ficou colocado, uns dez marinheiros, entoando uma canção
selvagem, empreenderam a tarefa de fazer girar o guindaste.
Primeiro o navio estremeceu, abanou. Depois inclinou-se cada
vez mais. A cada volta do guindaste, as vagas, em redor do
casco, erguiam-se em fúria. Por fim, deu-se como que uma
explosão. O Pequod endireitou-se e o gancho começou a subir,
arrastando a primeira barra de toucinho. Os cetáceos são
rodeados de toucinho como a laranja da casca. A operação
estava pois no princípio. O guindaste continuava a girar, o
cachalote rolava sobre si próprio e a barra ia crescendo,
crescendo sem interrupção. Quando atingiu o cesto da gávea, 

58

o guindaste parou. Um instante mais tarde, um novo gancho
estava cravado no corpo do cachalote, o guindaste voltava a
girar e a segunda barra elevava-se lentamente até ao cimo da
mastreação. Mas, enquanto esta manobra prosseguia, e a
terceira, a quarta, a quinta barras eram arrancadas ao cadáver
do cachalote, uma equipa de marinheiros especializados
fazia-as descer uma após outra por uma escotilha para um
espaçoso porão chamado câmara do toucinho e, na penumbra,
enrolavam-nas lado a lado ao ritmo da canção entoada agora a
plenos pulmões pelos seus companheiros que, lá em cima,
continuavam a carregar com todas as forças nas manivelas do
guindaste.
- Icem as correntes e arriem a carcaça!
Os ganchos, as roldanas e o guindaste cumpriram o seu dever.
Depois de terem esfolado o cachalote, decapitaram-no e
penduraram a sua cabeça sangrenta no costado do Pequod, tal
como Judite atara à cintura a cabeça do gigante Holofernes. Um
fantasma branco, colossal e informe, tudo o que resta do
cetáceo, afasta-se lentamente nas vagas, onde redemoinham os
insaciáveis tubarões. Centenas de aves de rapina sobrevoam-no,
soltando gritos e acabam de desfazê-lo com os bicos acerados
como punhais.
Uma hora mais tarde, por volta do meio-dia, a carcaça nada
mais era do que uma mancha indistinta no horizonte. Mas, na
ponte deserta, reinava agora um silêncio de funeral.
Subitamente, o capitão Acab surgiu da sua escotilha,
inclinou-se sobre o filerete e contemplou longamente a
monstruosa cabeça pendurada no costado do navio.
- Fala... Conta-me o teu segredo! - murmurava ele. - Tu que
mergulhas no mais profundo dos oceanos, tu para quem o tempo
não tem sentido, tu que viste tantos cruzeiros triunfantes,
Diz-me... mas também tantos naufrágios. Fala, peço-te!
Bruscamente calou-se. Com efeito um dos vigias acabava de
gritar:
- Navio à vista! 

59 

- Um navio? - repetiu o capitão Acab endireitando-se. -
Onde?
- Na frente, a estibordo, capitão! E dirige-se para nós!
Com efeito, o recém-chegado avançava a boa velocidade para o
Pequod. Tratava-se do Jéroboam, outro baleeiro de Nantucket.
Assim que se aproximou, lançou um escaler ao mar. No entanto,
quando o seu capitão, de nome Mayhew, viu que nos preparávamos
para descer a escada de abordagem, declarou:
- É inútil! Há uma epidemia a bordo. Não quero ter qualquer
contacto convosco. - Parou o escaler a alguns metros do
Pequod. Entre os marinheiros que o acompanhavam, encontrava-se
um homem de aspecto singular. Bastante novo e de pequena
estatura, apresentava um rosto bexigoso sob uma cabeleira
amarela. E, ao contrário dos outros marinheiros que usavam
todos camisolas, vestia um fraque com abas, do qual enrolava
as mangas compridas de mais, acima dos pulsos.
Mal o reconheceu, Stubb exclamou:
- Olha, não há dúvida, é o Gabriel, aquele maluco do
Jéroboam!
Fazia alusão a uma certa história que corria em Nantucket a
respeito deste esquisito personagem. Pois não se dizia que
este meio-louco, com olhos onde luzia um brilho fanático, se
tomava pelo arcanjo Gabriel e acabara por exercer sobre a
tripulação do Jéroboam uma autoridade quase soberana?
Em resposta à declaração do capitão Mayhew, o capitão Acab
gritou:
- Não tenho medo da sua epidemia, amigo! Vamos, suba a
bordo!
Porém, ouvindo estas palavras, Gabriel largou o remo e
pôs-se em pé bramindo:
- Toma cuidado, capitão Acab! Não receias a febre-amarela, a
febre biliosa? Nem mesmo receias a horrível peste?
Mayhew quis fazê-lo calar:
- Ora vamos, Gabriel, senta-te e deixa-nos em paz!
Imperturbável, Acab perguntou:
- Viram a baleia branca?
Gabriel fingiu considerar que aquela pergunta lhe era
dirigida e, erguendo-se de novo:
- Ah, Acab, poderás imaginar a tua baleeira desmantelada e
afundada! Pensa, pensa na formidável cauda da baleia branca!
- Escuta, Gabriel - disse o capitão Mayhew -, se te
levantares mais uma vez, se voltares a abrir a boca...
Aparentemente reduzido ao silêncio Gabriel voltou a sen
tar-se no banco, e o capitão Mayhew conseguiu então contar ao
patrão do Pequod uma triste história na qual Moby Dick
representava o papel principal.
- Sim - disse ele - dois anos após a nossa partida de
Nantucket, avistámos um dia Moby Dick, a baleia branca!
Macey, o meu imediato, ansiava por se defrontar com ela.
Quando lhe dei o meu consentimento, convenceu cinco homens a
acompanhá-lo na sua baleeira. Depois fez-se ao largo, mas teve
de utilizar muitos rodeios antes de conseguir aproximar-se do
monstro, o qual mergulhou mal o arpão lhe penetrou na carne.
Macey, já certo do triunfo, esperava que ela se dignasse
reaparecer para acabar de a matar a golpes de lança. Mas,
subitamente, surgiu muito perto da baleeira uma massa branca
que com uma forte pancada da cauda precipitou nas vagas o meu
infeliz imediato...
Cabe-me reconhecer que Gabriel, aqui presente, antes da sua
partida, predissera a Macey que ele corria para a sua
perdição.
Mayhew terminara a narração. Acab, então, fez-lhe numerosas
perguntas acerca deste deplorável acidente, de tal modo que o
capitão do Jéroboam não pôde deixar de lhe Perguntar:
- Tenciona também defrontar Moby Dick?
- Tenciono sim - respondeu Acab.
porém Gabriel, que se mantivera sossegado enquanto o capitão
falara, levantou-se pela terceira vez e tornou com veemência,
apontando para Acab um indicador profético: 

60 61 

- Pensa, pensa em Macey, esse blasfemador que dorme hoje no
fundo do oceano! Quererás participar da sua sorte?
Acab encolheu os ombros e dirigindo-se a Mayhew:
- Creio que tenho no meu saco de correio uma carta dirigida
a um dos seus oficiais.
Depois, avistando Starbuck:
- Vá buscá-la.
Aqui, são necessárias algumas palavras de explicação.
Naquela época longínqua, todo o baleeiro se encarregava, no
momento da partida, da correspondência destinada às
tripulações dos navios que já tinham partido. A entrega desta
correspondência fazia-se ao acaso dos encontros nos cinco
oceanos. É escusado dizer que a maior parte das cartas nunca
chegava aos seus destinatários, ou chegava somente dois ou
três anos depois de terem sido enviadas.
Starbuck não tardou a voltar com a carta em questão que
entregou a Acab. Este necessitou de um bom minuto para
decifrar a direcção, pois o sobrescrito estava coberto de
manchas de bolor.
- É letra de mulher, aposto... Senhor... Senhor Har... Sim,
Senhor Harry Macey, a bordo do Jéroboam...
Depois, erguendo bruscamente a cabeça:
- Mas, capitão Mayhew, é Macey, o seu imediato... Ele
morreu!
- Pois - respondeu Mayhew. - Pobre rapaz! Essa carta é da
mulher dele. Mesmo assim dê-ma.
Gabriel apontou de novo para Acab o indicador profético:
- Não! - exclamou ele. - Acab, ordeno-te que fiques com essa
carta! Assim poderás entregá-la tu próprio ao seu
destinatário, visto que não tardarás a ir ter com ele!
- Vai para o diabo que te carregue! - bramiu Acab.
E acrescentou, atirando a carta ao capitão Mayhew:
- Apanhe-a!
No entanto, a carta em vez de cair nas mãos do capitão, foi
parar às mãos de Gabriel, o qual, depois de a ter picado com a
ponta de uma faca, a atirou com a faca, para a ponte do
Pequod. 

62 

Instantes mais tarde, à ordem do mesmo Gabriel, a baleeira
remava a toda a força para o outro navio.
Após este incidente, continuámos a descer as barras de
toucinho do cachalote pela escotilha e a enrolá-las no mourão.
Porém, enquanto trabalhávamos, comentávamos o facto que
acabávamos de testemunhar e alguns dos nossos não podiam
deixar de ver nisso um sinistro presságio. 

63 

VIII 

A HISTÓRIA DO TOWN-HO 

Estávamos agora longe, muito longe das ilhas Crozet, e
mais longe ainda do cabo da Boa Esperança. No entanto,
encontrávamo-nos numa das rotas marítimas mais concorridas do
Globo. E, nesta rota, não tardámos a cruzar-nos com um
baleeiro que voltava ao porto, terminada a sua campanha de
pesca. Tratava-se do Town-ho. Tinham-lhe dado o nome do grito
que outrora soltavam os vigias quando avistavam uma baleia.
O nosso encontro foi breve. Mas, por três marinheiros do
Town-ho - quer dizer, por marinheiros da minha raça, pois os
outros eram quase todos polinésios -, soubemos, a respeito de
Moby Dick, novas tão extraordinárias que a baleia branca
começou a aparecer-nos como o instrumento daquela justiça
divina que, por vezes, parece perseguir certos homens. Devo
precisar que o capitão Acab jamais soube destas novas, pois
nenhum de nós teve coragem de lhas comunicar.
Uns anos mais tarde, encontrando-me na Estalagem Dourada, em
Lima, capital do Peru, na companhia de alguns espanhóis
ociosos, entre os quais dois explêndidos cavaleiros, D. Pedro
e D. Sebastião, que eram meus amigos íntimos, tive
oportunidade de fazer alusão às confidências do Town-ho.
Pediram-me encarecidamente que fosse mais preciso. Eis pois o
relato que fiz nesse dia, não sem ser interrompido de tempos a
tempos por perguntas que me faziam, ora um ora outro, D.
Sebastião e D. Pedro.  

"Senhores - comecei - aproximadamente dois anos antes do
encontro do Pequod com o Town-ho navegava no Pacífico ao largo
das costas da vossa pátria e um pouco a norte do equador. Uma
manhã, quando certos marinheiros accionavam, como o faziam
todos os dias, as bombas do navio, verificaram que o porão
metia mais água do que de costume. Supôs-se que o casco fora
furado por um espadarte. Devo dizer-vos que o capitão estava
plenamente convencido de que o esperava a sorte naquela
região.
Não estava pois nada disposto a afastar-se tão cedo dali. De
resto, o veio de água apesar de ser impossível de localizar
não fora considerado alarmante. o navio, portanto, continuou
viagem. Assim passOu uma semana. Porém a sorte não vinha nunca
mais, enquanto que por seu lado o veio de água aumentava
incessantemente sem se saber a sua origem. No entanto, o
comandante um pouco inquieto deu ordem para içar todas as
velas e navegar rumo ao grupo de ilhas mais próximo, onde
esperava poder fazer a reparação no casco do seu navio. É
certo que a distância que o separava destas ilhas era bastante
grande. No entanto confiando sempre na sorte, contava não
naufragar no caminho. Pois não tinha ele para accionar, bombas
em muito bom estado e trinta e seis homens bem treinados que,
repartidos em várias equipas podiam lutar indefinidamente
contra o veio de água, mesmo no caso de este continuar a
aumentar? As coisas ter-se-iam passado o melhor possível, pois
o vento era favorável, e o Town-ho teria chegado são e salvo a
bom porto, se o imediato, um certo Radney, de Martha's
Vineyard, não se tivesse exposto à brutalidade e vingança
justificada de um aventureiro de Búfalo, natural dos Lagos e
chamado Steelkilt.
Nesta altura, D. Sebastião, balançando-se na rede,
interrompeu-me pela primeira vez:
- Um momento, Ismael! Onde ficam esses Lagos e essa cidade a
que chama Búfalo? 

64 65 

- Búfalo fica na margem esquerda do lago Erié, caro amigo -
respondi -, mas, peço-lhe, tenha paciência, voltaremos a falar
disso daqui a pouco... Voltando ao que lhes dizia, senhores,
Steelkilt, ao qual chamarei também o homem dos Lagos, apesar
de nascido em terras do interior, não deixava de ser um
marinheiro audacioso. Quanto a Radney - esse um verdadeiro
baleeiro, visto ser natural de Nantucket -, tinha a estranha
característica de ser tão vingativo e conflituoso como um
catalão, com acessos de bondade absolutamente inesperados. O
homem dos Lagos, esse, apesar de muito rude, mostrara-se até
então inofensivo e dócil, porque o tratavam bem. E, no fundo,
ele não queria outra coisa... Infelizmente, Radney, sobre quem
parecia pesar uma espécie de fatalidade, descontrolou-se, e
Steelkilt... Agora, senhores, prestem-me toda a atenção.
"Pouco tempo depois de o Town-ho ter aproado às ilhas, o
veio de água pareceu aumentar. Contudo, duas horas de bombagem
por dia bastavam ainda. Saibam, senhores, que alguns capitães,
sobretudo quando cruzam um oceano relativamente calmo como o
Atlântico, só de tempos a tempos dão ordens para bombear. Mas
é indispensável que o oficial de quarto faça executar esta
ordem quando lha dão, senão, num espaço de tempo mais ou menos
longo, encontrar-se-ia com os seus companheiros no fundo do
oceano. Por outro lado, raramente se accionam as bombas sem
razão plausível, quando se navega nas proximidades de qualquer
costa. Para que um capitão comece a alarmar-se, é preciso não
somente que o seu barco meta mais água do que de costume, mas
também que este acidente se produza numa zona pouco
frequentada. Tal era a situação do Town-ho quando se
aperceberam de que o veio de água, como acabo de dizer,
continuava a aumentar. Radney, o imediato, mais preocupado
ainda do que o resto da tripulação, ordenou que içassem todas
as velas, inclusive as do cimo dos mastros, e os revelins.
"Ora, este Radney, meus senhores, não era mais poltrão do
que qualquer outro, então, por que razão se mostrava tão
excitado? É claro que se ele receava como disseram alguns
marinheiros assim perder o Town-ho, é porque fazia parte da
sociedade proprietária deste! Assim, chegada a noite, enquanto
bombeavam, gracejavam ainda a este propósito. Entretanto a
água, clara como se jorrasse de uma fonte, borbulhava-Lhes à
volta dos tornozelos antes de deslizar pela ponte e sair pelos
embornais. Os senhores sabem que quando um indivíduo, pela sua
categoria, tem autoridade sobre alguns dos seus semelhantes, e
descobre que um dos subalternos Lhe é superior em carácter
experimenta instantaneamente por este subalterno uma
invencível aversão e procura, por todos os meios, humilhá-lo.
"Agora, situemos os nossos personagens. Steelkilt, provido
como toda a gente de um cérebro, de um coração e de uma alma,
era um magnífico rapagão, cuja barba loura flutuava ao vento.
Radney era, não apenas feio, mas duro, mau e teimoso como um
burro.
"Em resumo, ele detestava Steelkilt e este sabia-o. Vendo o
imediato que avançava para as bombas onde trabalhava com os
companheiros, o homem dos Lagos fingiu não o ver e continuou a
gracejar:
"Bonito veio de água! Que dizem, rapazes? Olhem para isto, É
claro como uma fonte. E se se metesse numa garrafa? Querem
saber a minha opinião? Pois bem, se eu estivesse no lugar do
velho Radney, cortava a minha parte do casco e rebocava-a para
casa. Porque eu estou mesmo convencido de que o espadarte
apenas começou o trabalho. Depois voltou. Mas não vinha só.
Trazia uma equipa completa de peixes-serras, peixes-limas,
peixes-martelos...
Agora, são talvez vá Sei lá que mais!
rias dezenas com uma dificuldade enorme em destruir o casco
na minha f Se o velho Radney estivesse aqui, rente,
dir-lhe-ia: Então não vê que eles estão a dar cabo dos seus
bens? Vamos, salte borda fora e disperse-os! Mas, vocês sabem
tão bem como eu, o velho Radney é um coração simples e puro...
E, além disso, bonito como uma flor! Dizem que colocou o resto
da fortuna num negócio de espelhos. Às vezes pergunto a mim
próprio se ele aceitaria trocar o seu perfil pelo de um pobre
diabo como eu! 

66 67  

O imediato, afectando não ter ouvido este monólogo irónico,
aproximou-se dos marinheiros e rugiu:
- Que estão para aí a fazer? Estão a dormir, que raio!
Porque é que essas bombas estão paradas? Mãos ao trabalho,
c'os diabos, mãos ao trabalho! E com força!
"Steelkilt estava alegre como um passarinho.
- Está certo, senhor, está certo - respondeu ele em nome dos
companheiros. - Isto vai aquecer! Verá!
"De facto as bombas começaram a trabalhar com um ruído
infernal. Os homens carregavam nos cabos com todas as forças,
esforçavam-se, ofegavam, sopravam como focas. Terminada a
tarefa, toda a equipa foi para a proa. Steelkilt, com o rosto
muito vermelho e os olhos injectados de sangue, sentou-se no
cabrestante e, puxando do lenço, começou a limpar o suor que
lhe escorria pela testa. Que demónio impeliu Radney a escolher
este momento para indispor um homem com os nervos já à flor da
pele devido à fadiga. Parou em frente de Steelkilt e, num tom
agressivo, ordenou-lhe:
- Pegue numa vassoura e varra a ponte. Depois, com uma pá,
tire dali aquela porcaria.
"E apontava, junto do filerete, excrementos de um porco que
fugira do porão.
- Aqui, senhores, um parêntesis. A limpeza das pontes é uma
tarefa que nunca deixa de se fazer todas as noites, salvo
quando há grandes tempestades. Já se viram tripulações varrer
a ponte do navio no instante em que este ia naufragar.
Tal é o instinto da ordem e do asseio nos marinheiros, que
muitos não consentem em morrer senão após terem feito a
toilette. Mas, de qualquer maneira, a limpeza é o trabalho dos
grumetes, quando há grumetes a bordo. Para voltar ao Town-ho,
os marinheiros tinham sido repartidos em várias equipas que
trabalhavam por turnos nas bombas. Steelkilt, activo e de uma
força pouco vulgar, fora escolhido para comandar uma destas
equipas. Logicamente, devia estar isento de certas tarefas.
Espero, senhores, que compreendam como estavam as coisas entre
o homem dos Lagos e o imediato da baleeira. Último pormenor, e
não dos menos importantes:
"ao ordenar a Steelkilt para pegar numa pá e retirar o
excremento do porco, Radney injuriava-o tão gravemente como se
Lhe cuspisse na cara.
"O homem dos Lagos, depois de ter olhado fixamente o seu
interlocutor, respondeu-lhe numa voz tão firme quanto
possível:
- Não, senhor, não vou varrer as pontes. Não é o meu
trabalho, mas sim o dos grumetes. Aliás, não tendo sido
designados para as bombas, não fizeram nada ou quase nada todo
o dia.
"Com ar furioso, e brandindo um martelo que se encontrava em
cima de um tonel ao alcance da sua mão, Radney repetiu:
- Vá varrer as pontes! Depois pegue na pá e faça o que eu
lhe ordenei!
"Steelkilt dominou a cólera o melhor que pôde. Como
continuava imóvel sentado no cabrestante, Radney aproximou-se
mais dele e, sacudindo-lhe debaixo do nariz o martelo que
apertava na mão, gritou com mais força:
- Obedeça imediatamente! Senão...
"Steelkilt ergueu-se, dizendo:
- Não, senhor, não faço nada disso!
"Depois pôs-se a andar a passos lentos à volta do
cabrestante. Radney seguia-o como a sua sombra, ameaçando-o em
todos os tons. Por fim, o homem dos Lagos, resolvido a não
recuar mais, parou ao pé de uma escotilha.
- Senhor Radney - disse ele -, eu não lhe vou obedecer! Vá
pôr esse martelo onde o tirou. Senão não respondo por mim!
"Porém, o imediato do Town-ho aproximou-se mais, lançando
sobre o seu interlocutor as mais grosseiras pragas. Sem recuar
um passo, Steelkilt fechou o punho direito, levou-o atrás e
disse: 

68 69 

- Se esse martelo me tocar, mesmo de leve, na cara, eu
mato-o, senhor Radney!
"É de crer que o diabo não era alheio a isto, pois, neste
instante, o martelo roçou a face de Steelkilt... Num abrir e
fechar de olhos, o punho cerrado avançou. E um segundo mais
tarde, Radney, com o maxilar quebrado e a deitar sangue pela
boca como uma baleia, caía sobre a escotilha.
"Steelkilt não esperou que fosse dado o alarme. Aproximou-se
das peias e sacudiu-as a fim de advertir os seus melhores
camaradas, dois canalleres que, nessa altura, estavam de
vigia."
Desta vez foi D. Pedro que me interrompeu:
- Canalleres! - exclamou. - Nos nossos portos do Peru, vemos
muitas vezes baleeiros, mas nunca ouvimos falar de canalleres.
Exactamente, o que é isso, Ismael?
- Os canalleres, meu amigo - respondi -, são bateleiros.
Navegam sobretudo no canal de Erié, que liga o lago deste nome
ao Hudson. Por uma transição misteriosa e talvez natural,
alguns, como estes de que vos falo, trocam os canais pelo mar.
Ao contrário do que podereis pensar, são rudes marinheiros...
Agora, senhores, voltemos à minha história. Dizia-vos pois que
Steelkilt, com a intenção de advertir os seus melhores
camaradas, começara a sacudir as peias.
"De súbito, os três outros oficiais do navio e os quatro
arpoadores lançaram-se sobre ele, e arrastaram-no até ao meio
da ponte. Rápidos como cometas, os dois canalleres tinham
descido do enfrechate. Intervindo na luta tentaram levar o seu
amigo para o castelo da proa. Outros marinheiros, acorrendo a
ajudar, juntaram-se a eles. Então foi a confusão geral.
O capitão, corajoso, mas prudente, mantinha-se afastado e,
brandindo uma lança, bradava, dirigindo-se aos oficiais e aos
arpoadores:
- Não o poupem! Cheguem-Lhe com força! E tentem arrastar
esse valdevinos até ao castelo da popa!
De vez em quando, aproximava-se um pouco e tentava picar, 

70

com a ponta da lança aquele a quem chamava valdevinos.
Porém Steelkilt e os camaradas eram demasiadamente numerosos
para ficarem facilmente reduzidos à impotência.
Conseguiram libertar-se, e depois alcançar a frente do
navio.
Ali, colocaram três tonéis na mesma linha do cabrestante e
entrincheiraram-se por trás desta barricada.
O capitão, a quem o stewart de bordo acabava de entregar
duas pistolas, tomou uma em cada mão e bradou de novo:
- Saiam daí, piratas! Saiam daí, bandidos, degoladores!
Steelkilt saltou para cima da barricada e pôs-se a passear
ali tranquilamente de um lado para o outro. "Se me matar -
parecia ele dizer ao capitão - será o alerta para uma
amotinação."
O capitão deve ter compreendido esta linguagem, pois pareceu
reflectir um momento. No entanto, ordenou aos revoltosos que
retomassem imediatamente o trabalho.
- Capitão, se lhe obedecermos promete que não nos toca?
perguntou Steelkilt.
- Eu não faço promessas! - replicou o capitão. - Retomem o
trabalho. Não estão a ver que se pararem de bombear numa
altura destas arriscam-se a deixar afundar o navio? Ao
trabalho! Ao trabalho!
E de novo brandiu uma das pistolas.
- Deixar afundar o navio? Muito bem, - repetiu Steelkilt. -
pois que se afunde! Jure, capitão, que ninguém nos tocará.
Senão, não arredamos daqui!
Depois, voltando-se para os companheiros:
- Não é assim, rapazes?
Os marinheiros responderam-lhe com uma explosão de
entusiasmo. O homem dos Lagos pôs-se de novo a passear na
barricada, sem perder de vista o capitão e dizendo:
- Não somos culpados do que está a acontecer. Não fomos nós
que o quisemos... Eu preveni o imediato. Aconselhei-o a largar
aquele martelo... Queria forçar-me a fazer um trabalho de
grumete. 

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Mas tem os maxilares duros, o animal! Acho que parti um
dedo... Vamos, capitão! Esqueça tudo isto. Prometa, que diabo!
Estamos prontos a retomar o trabalho. Bem vê: não queremos ser
chicoteados...
- Já lhe disse que não faço promessas! - gritou o capitão -
Ao trabalho! Ao trabalho!
- Vejamos, capitão! Nós queremos a paz. Uma amotinação iria
contra os nossos interesses. Prometa que não seremos
chicoteados e nós retomamos imediatamente o trabaLho!
- Nada de promessas! Ao trabalho! Ao trabalho!
Durante uns segundos, Steelkilt olhou em redor. Depois,
fazendo frente ao capitão mais uma vez:
- Não queremos ser enforcados. Por isso não levantaremos a
mão para si, salvo se nos atacar. Mas quanto ao trabalho é
escusado insistir! Prometa primeiro. Trabalharemos depois.
- Pois bem, sendo assim - declarou o capitão -, desçam para
o porão do castelo da proa. Conservá-los-ei ali até que peçam
perdão!
Steelkilt voltou-se para os companheiros:
- Vamos? - perguntou.
Houve um breve conciliábulo. Depois os marinheiros
aproximaram-se da escotilha e, resmungando de raiva,
deixaram-se escorregar para a obscuridade do porão. Steelkilt
foi o último a entrar pela escotilha. Quando a sua cabeça
desapareceu, o capitão e os seus partidários transpuseram de
um salto a barricada e fecharam a tampa corrediça.
O capitão, dirigindo-se ao steward, gritou:
- Vai-me buscar o cadeado!
Passado um minuto, o steward voltou com um pesado cadeado de
cobre. O capitão entreabriu a tampa e, inclinando-se para a
frente, murmurou algumas palavras dirigidas aos amotinados.
Depois fechou a tampa e deu uma volta à chave do cadeado. Os
prisioneiros eram em número de dez. Na ponte havia uns trinta
homens que, na maioria, tinham ficado neutros. 

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Os oficiais e os arpoadores ficaram toda a noite de guarda à
proa e à popa, mas sobretudo junto à escotilha do castelo da
proa. No entanto, a noite passou sem qualquer incidente. Os
homens que se tinham conservado fiéis ao capitão trabaLharam
afincadamente nas bombas, cujo ruído ecoava solitário no
sombrio silêncio da noite.
Ao alvorecer, o capitão dirigiu-se ao castelo da proa e
gritou:
- Estão decididos a retomar o trabalho?
- Não! - bradaram em coro os prisioneiros.
Perante esta recusa, mandaram para baixo água e umas
mãos-cheias de biscoitos. A seguir o capitão fechou o cadeado,
meteu a chave no bolso e voltou para o castelo da popa.
Esta cena repetiu-se três dias seguidos, duas vezes por dia.
Ao quarto dia, ouviu-se pela escotilha entreaberta, um ruído
confuso. Discussão? Desordem? E, subitamente, quatro homens,
forçando a tampa da escotilha, irromperam pelo castelo da proa
e declararam que estavam prontos a trabalhar. A fome e a
atmosfera fétida do porão, juntas ao receio de um castigo
exemplar, obrigara-os a ceder. Satisfeito com este primeiro
resultado, o capitão inclinou-se sobre a escotilha e gritou:
- Então e vocês, o que decidem?
- Deixe-nos em paz! - replicou Steelkilt -, e volte para o
sítio de onde veio.
No quinto dia, após terem conseguido vencer a resistência
dos companheiros, que procuravam retê-los, três outros
amotinados surgiram no castelo da proa. No porão estavam
apenas os irredutíveis: Steelkilt e os dois canalleres.
- No vosso lugar - disse-lhes o capitão -, eu retomaria o
trabalho.
- Uma vez mais, deixe-nos em paz e feche a escotilha! -
bradou Steelkilt.
- Com todo o prazer! - respondeu o capitão.
Enraivecido devido à deserção dos companheiros Steelkilt fez
a seguinte proposta aos dois canalleres: 

73  

- Cada um de nós tem uma faca bem afiada que se esqueceram
de nos tirar quando nos fecharam neste túmulo. Eis o que vamos
fazer: quando voltarem a abrir a escotilha, saímos juntos e
apoderamo-nos do navio! Se vocês não quiserem ajudar-me,
fá-lo-ei só. Não quero passar nem mais uma noite neste buraco.
Aceitam?
- Aceitamos - responderam os canalleres.
No entanto tinham dado esta resposta bastante contrafeitos,
pois tanto um como outro, esgotados por aquela interminável
reclusão, só tinham uma ideia: sair o mais depressa possível
do porão e implorar a clemência do capitão... Se ainda fossem
a tempo. Aqueles marinheiros rudes, mas sem carácter, estavam
prestes a trair o seu melhor amigo... Em plena noite, quando
Steelkilt adormeceu, caíram sobre ele, amarraram-no e
amordaçaram-no, e depois, para atrair o capitão, desataram aos
gritos. Julgando que fora cometido um assassínio no porão, o
capitão e os seus oficiais, seguidos dos arpoadores,
precipitaram-se para o castelo da proa. Num instante a
escotilha foi aberta. Os canalleres lançaram Steelkilt para a
ponte, dizendo:
- Está a ver o que fizemos! Este homem seria capaz de tudo.
Nós entregamos-lho reduzido à impotência!
Porém, em lugar de os felicitar, arrastaram-nos como animais
para a ponte, até ao mastro de mezeta. Ali, em companhia de
Steelkilt, sempre amarrado e amordaçado, suspenderam-nos na
enxárcia.
Ao nascer do Sol, o capitão foi fazer-lhes uma breve visita.
- Que pena - disse -, que não haja abutres por aqui!
Depois mandou reunir toda a tripulação e, dirigindo-se aos
sete marinheiros que se tinham amotinado, mas haviam achado
inútil resistir até à morte:
- Bastante me apetece chicoteá-los! Todavia, perdoo-lhes,
porque vocês souberam retirar-se a tempo deste caso... Quanto
a vocês - ajuntou ele dirigindo-se de novo aos três homens que
balançavam na enxárcia -, a minha intenção é fazê-los em
bocadinhos e atirá-los para as caldeiras! 

74 

E, pegando num cabo, fustigou fortemente os dois traidores e
não se deteve senão quando estes deixando de gritar, pareceram
ter perdido os sentidos.
- Creio que abri o pulso - disse ele -, mas ainda tenho
força. E vou-me servir dela para corrigir o chefe do bando!
Tirem-lhe a mordaça. Talvez tenha alguma coisa a dizer em sua
defesa...
Livre da mordaça, Steelkilt ficou uns segundos calado.
Olhava o capitão bem nos olhos.
- Eis o que tenho a dizer - articulou ele numa voz rouca -,
se me chicotear eu mato-o!
- Pobre idiota, imaginas que me metes medo! - exclamou o
capitão. E recuou, erguendo o cabo.
- Um conselho, não me chicoteie! - Tornou o homem dos lagos.
- E é um conselho que me vai Impedir de o fazer!
Mas neste instante Stilkilt murmurou algumas palavras que só
o capitão pôde ouvir. Este, com grande espanto da tripulação,
deu um salto para trás, percorreu a ponte nos dois sentidos,
duas ou três vezes, largou o cabo e exclamou:
- Não... Impossível... Cortem esses cabos. Não ouviram?
Eu disse-lhes que cortem os cabos!
Quando os três oficiais presentes se precipitaram para
executar esta ordem, um homem muito pálido, com a cabeça
ligada, deu um passo em frente e, com um gesto deteve-os. Era
Radney, o imediato. Deixava a cabina pela primeira vez desde
que Steelkilt o esmurrara. Apanhou o cabo e disse ao capitão:
- Vou mostrar que sou mais enérgico que o senhor!
E em passo firme aproximou-se do seu inimigo.
- Você é um cobarde. - disse-lhe Steelkilt.
- Talvez - replicou o imediato do Town-ho. - E é, sem dúvida
por isso que vou dar-me ao pra zer de te sovar como mereces! 

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Mais uma vez ainda, Steelkilt murmurou palavras
incompreensíveis para os marinheiros que não estavam perto
dele. Radney, com uma expressão de surpresa, ficou um instante
de braço erguido. Depois, recompondo-se, acabou o gesto, e o
cabo silvou... Terminado o correctivo, os três amotinados
foram libertados e toda a tripulação voltou ao trabalho.
Os acontecimentos que se seguem, senhores, são poucos e
aparentemente incríveis. Steelkilt, como devem calcular,
ruminava a sua vingança. Prometera a si próprio aproveitar uma
noite em que estivesse de quarto ao mesmo tempo que Radney
para atirar este ao mar. Porém esta vingança não se
concretizou, pois um acaso - um acaso diabólico - impediu-o de
a levar a cabo e de ficar assim com um crime na consciência.
Dias depois, entre a alvorada e o nascer do Sol, um dos
vigias gritou:
- Além! Além!... Senhor Jesus, que baleia!
Esta baleia era Moby Dick! Sim, senhores, Moby Dick!
- Moby Dick! - exclamou D. Sebastião. - Então as baleias
agora também têm nomes de baptismo? Por favor, Ismael, seja
mais claro!
- Bem, meus senhores - respondi -, Moby Dick é uma baleia
branca, célebre em toda a superfície dos oceanos, uma baleia
até aqui invencível e que parece até imortal... Mas isso seria
uma história demasiadamente comprida. Saibam apenas que, em
poucos segundos, toda a equipagem do Town-ho ficou em
ebulição. O veio de água? Ninguém pensava mais nisso. Em menos
tempo do que é preciso para o dizer as baleeiras foram
lançadas ao mar. Steelkilt era aquilo a que se chama o homem
da frente do imediato. Cabia-lhe o papel de segurar e manobrar
a linha na ponta da qual estava fixo o arpão. Porque milagre o
arpoador de Radney foi o primeiro a lançar a sua arma? A
verdade é que a baleia, solidamente presa, se pôs a fugir a
uma indiscritível velocidade. Depois, bruscamente, parou. A
embarcação chocou com o dorso do monstro. Radney estava à
proa, com a lança na mão, para acabar, como convém, o trabalho
começado pelo arpoador. Desequilibrando-se com o choque,  

76

caiu para a frente. Em cima de quê? Coisa rara: em cima das
costas da baleia! Desvairado, saltou para a água e tentou
afastar-se a nado. Mas Moby Dick, erguendo uma nuvem de espuma
voltou-se, apanhou o nadador na sua bocarra formidável e
continuou a fugir ainda mais rapidamente.
Que fez Steelkilt? Que podia ele fazer? A sua vida e a dos
companheiros estavam em jogo. Sem reflectir, pois já não
pensava na vingança, puxou da faca e cortou a linha que
segurava na mão. Libertada, a baleia, levando Radney, partiu
com a prontidão do relâmpago e não tardou a desaparecer no
horizonte.
Alguns dias depois deste drama, o Town-ho atingiu o grupo de
ilhas. Ali, Steelkilt apoderou-se de uma piroga indígena e
desertou com alguns companheiros. Em seguida, ninguém mais
ouviu falar dele. Mas, em Nantucket, que eu visitei quando da
minha última estadia na ilha dos baleeiros, a viúva de Radney
obstina-se em ficar contemplando o oceano. No entanto, sabe
que ele nunca restitui as suas vítimas. E, em sonhos - foi
pelo menos o que me disse - vê todas as noites deslizar o
enorme fantasma da grande baleia branca.
Foi esta história que contei uma noite, a fim de distrair
uns espanhóis ociosos, na Estalagem Dourada, em Lima, capital
do Peru. 

77 

IX 

O DONZELA 

Em que águas navegávamos agora? Não posso dizê-lo com
exactidão. Sem dúvida muito próximo da Índia. Em resumo, no
dia marcado pelo destino, encontrámos um baleeiro de Brême, o
Donzela, cujo capitão era Derick de Beer.
Por que razão parecia ele tão desejoso de nos cumprimentar?
Parou e lançou ao mar uma baleeira que avançou rapidamente
para nós. Na frente da embarcação, parecendo dar mostras de
impaciência, vinha o capitão Derick de Beer.
- O que tem ele na mão? - perguntou Starbuck apontando um
objecto que o alemão brandia. - Devo estar enganado...
Sabem... Um daqueles funis que servem para encher os
candeeiros...
- Não, não é isso - respondeu Stubb -, é uma cafeteira...
Não vêem, ao pé dele, uma chaleira que deve estar cheia de
água quente? Vem decerto fazer o nosso café. Sempre se
encontram tipos fixes por esses oceanos!
- O Starbuck é que tem razão - interveio Flask. - O que o
capitão do Donzela nos mostra é mesmo um funil e, junto dele,
encontra-se um bidão de óleo. Está sem óleo e vem pedir-nos
algum.
Quando o capitão Derick de Beer subiu para a ponte do
Pequod, Acab, sem fazer o mínimo caso do que ele tinha na mão,
bombardeou-o com perguntas a respeito de Moby Dick. 

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Porém, o alemão, depois de Lhe ter dado a entender que nunca
tinha visto a baleia branca e que mesmo as baleias vulgares
pareciam tornar-se cada vez mais raras de alguns meses àquela
parte, apressou-se a acrescentar:
- Não tenho óleo. Poderia fazer o favor de me dar algum. Não
me apetece esta noite ser obrigado a deitar-me às escuras como
na noite passada.
Cheio o bidão, desceu para a baleeira. No entanto quando ia
a subir para a ponte do Donzela os vigias dos dois navios
assinalaram baleias. Derick de Beer, desejando aproveitar logo
aquela ocasião, nem mesmo se deu ao trabalho de se
desembaraçar do bidão de óleo. Virou a baleeira e lançou-se em
perseguição dos monstros, enquanto os seus marinheiros
lançavam ao mar as outras três baleeiras do Donzela. Os do
Pequod apressaram-se também a lançar à água três das suas
embarcações de combate. Mas tiveram de render-se à evidência,
os alemães tinham um avanço considerável sobre eles.
Havia oito baleias. Conscientes do perigo que corriam,
fugiam a toda a velocidade e em tão boa ordem que mais
pareciam cavalos atrelados. O sulco que deixavam era como um
vasto pergaminho que pareciam desenrolar interminavelmente à
superfície das ondas.
A última baleia, mais lenta e sem dúvida mais velha do que
as outras, lembrava uma enorme vaca corcunda. O seu jacto era
curto, pesado, laborioso e o dorso estava incrustado de
incontáveis conchas amareladas. De vez em quando fazia
estranhas guinadas e parecia prestes a perder o rasto das
irmãs. Subitamente compreendemos claramente a razão destas
guinadas: a baleia tinha apenas um coto no sítio da barbatana
direita.
- Espera aí, pequerrucha! - gritou-lhe o cruel Flaskezinho
mostrando o cabo que estava ao pé dele. - Vou-te dar uma faixa
para suspenderes o braço ferido.
- Não te faças esperto! - disse-Lhe Starbuck. - E não percam
nem um instante. Senão, os alemães apanham-nas! 

79 

Com efeito, as sete embarcações dirigiam-se todas para a
mesma baleia, não apenas por ser a maior, mas também porque
era a mais lenta e, em consequência disso, a mais fácil de
atingir. As três baleeiras do Pequod tinham alcançado as do
Donzela, pelo menos aquelas que tinham sido por último
lançadas ao mar. Pois o capitão Derick de Beer, esse,
continuava à frente, e tão seguro do seu êxito que, de vez em
quando, se voltava para trás e com um ar trocista agitava o
funil.
- Maldito alemão, grande cão! - resmungava Starbuck. - E,
além disso, ingrato! Quando penso que ainda nem há dez minutos
Lhe enchi o bidão!
Por seu lado, Stubb encorajava os companheiros:
- Então, rapazes, estão a dormir? Vão deixar-se bater por
esse papa-choucroute? Não estamos a avançar nada!
Mais depressa, mais depressa, mais depressa!
Flask, fremente de raiva, conservava o olhar fito na baleia.
- Que bossa, raio! Que bossa! Rapazes, não Lhes apetece
pentear aquela bossa? Aquela baleia é um banco ambulante, é um
cofre-forte! Vale pelo menos três mil dólares! Então, o que
esperam? Palavra de honra, que molengões! Mais depressa! Mais
depressa, diabo, mais depressa!
Agora, as três baleeiras do Pequod, a um ritmo magnífico,
progrediam frontalmente. Porém o capitão do Donzela continuava
à cabeça. Iria ganhar aquela louca correria? As suas
esperanças foram reduzidas a nada por uma falsa manobra.
Um dos remadores, sem qualquer razão, quebrou a cadência e,
erguendo os remos, quase voltou a baleeira. Derick de Beer
injuriou-o violentamente, enquanto Starbuck, Stubb e Flask
soltavam um grito de triunfo e aproveitavam aquele ensejo para
apanhar o alemão. A baleia fugia erguendo a cabeça. O seu
jacto tornara-se contínuo, a única barbatana batia na água
mais furiosamente do que nunca e as guinadas multiplicavam-se. 

80 

Temendo perder a presa, o alemão deu uma ordem ao seu
arpoador. Mas, no momento em que este ia executar essa ordem,
Queequeg, Tashtego e Daggoo erguiam-se como molas à proa das
baleeiras americanas. Os seus arpões silvaram, passaram por
cima da cabeça do arpoador de Derick de Beer e foram cravar-se
no corpo da baleia. Houve um terrível remoinho, depois uma
nuvem de espuma que quase nos cegou. Na confusão que se
seguiu, as três baleeiras do Pequod chocaram com a do Donzela
e lançaram borda fora o próprio Derick de Beer e o seu
arpoador.
Passando perto deles, Starbuck e Flask, enquanto a baleia os
arrastava a toda a pressa, estoiravam de riso sempre impiedoso
e Stubb, gritou-Lhes:
- Não se inquietem, meus cordeirinhos! Vêm atrás de nós
tubarões que estão prontos a pescá-los!
Porém a baleia proporcionou-Lhes uma corrida relativamente
breve. Parou e mergulhou. As três baleeiras pararam por sua
vez. Cada um dos arpoadores, pronto para qualquer
eventualidade, segurava a linha com ambas as mãos. Iria o
monstro prolongar o seu mergulho, levando para o fundo do mar
as frágeis embarcações?
As três linhas, agora perpendiculares, começaram a vibrar.
- Atenção, rapazes, ela está a mexer! - Gritou Starbuck.
Depois, passados alguns segundos, acrescentou:
- Puxem! Puxem! Ela está a subir!
Os arpoadores puxaram as linhas, deixando-as cair a seus pés
em rolos gotejantes. E não tardou que, a menos de umas cento e
vinte braças, a baleia reaparecesse. Era fácil de comprender,
devido a estes movimentos, que estava quase exausta. As
baleeiras aproximaram-se. Crivaram-na de golpes de lança.
Porém, apesar de estar já coberta de numerosas feridas,
continuava a expelir pelos orifícios água vaporizada e não
sangue, prova de que não fora ainda atingida nos órgãos
vitais. Quando ela rebolava, reparámos que tinha de lado uma
protuberância do tamanho de um alqueire.
- Olha, vou picá-la ali! - Exclamou Flask. - Parece ser um
bom sítio! 

81 

Sempre humano, Starbuck disse:
- É inútil. De qualquer maneira ela já não pode durar muito.
Porém falara demasiado tarde. A lança já fizera a sua obra.
No instante em que começava a brotar um sangue espesso deste
novo ferimento, a baleia, enfurecida pela dor, lançou-se sobre
as embarcações, chegando a danificar a de Flask. No entanto,
estava ferida de morte. Tentou recuar. Depois, ofegante,
continuou durante alguns instantes a bater a água com a única
barbatana. Por fim, deu uma volta sobre si própria e
imobilizou-se de barriga para o ar. Quando expeliu o último
jacto, dir-se-ia que uma mão potente acabava de estancar
aquela fonte talvez várias vezes centenária.
Como começava a afundar-se, Starbuck deu ordem para lhe
lançarem alguns cabos, após o que, lentamente e com infinitas
precauções, foi rebocada pelas três baleeiras até ao Pequod.
Depois de ter sido presa ao longo do navio e de começarem as
operações de desmembração, descobrimos - com que surpresa! -
que o seu corpo continha não apenas um arpão completamente
ferrugento, mas também a ponta de uma flecha de pedra! Quem
lançara aquela flecha, e em que época? Sem dúvida um índio do
Noroeste, muito tempo antes de os primeiros colonos brancos
terem posto os pés no continente americano.
Terminada a desmembração, enquanto a carcaça da nossa vítima
se afundava nas vagas, um dos vigias fez sinal que o Donzela
voltara a partir. Procurámo-lo com o olhar e verificámos que
se encaminhava realmente, com todas as velas desfraldadas,
para a sombria linha do horizonte.
Foi somente no dia seguinte que voltámos a pôr-nos de novo a
caminho. Aproximávamo-nos agora da estreita península de
Malaca, que, estendendo-se a sudeste da Birmânia, constitui a
ponta mais meridional de toda a Ásia. Esta península é
prolongada por numerosas ilhas - Samatra, Java, Bali, Timor -
e por arquipélagos, que formam, entre a Ásia e a Austrália,
uma espécie de via de comunicação e também uma muralha, 

82

na qual se abrem no entanto várias portas naturais, que servem
tanto para passagem de navios como de cetáceos. Entre estas
portas a mais frequentemente utilizada pelos marinheiros é o
estreito de Sonda, Entre Samatra e Java. Na época em que se
situa esta narração, os piratas malaios escondidos nas suas
pirogas, à sombra dos Promontórios que abundam na região,
investiam muitas vezes contra navios mercantes e, de lança em
punho, despojavam-nos das cargas: jóias, ouro, especiarias,
tecidos preciosos, marfim.
Um vento bastante forte impelia-nos para o estreito de
Sonda. O capitão Acab projectava passar pelo mar de Java e
subir para norte, até uma zona que, parece, servia de abrigo a
numerosos cachalotes. Em seguida, costearia as Filipinas e
chegaria às costas do Japão na altura da grande estação das
baleias. Assim, neste périplo, o Pequod, antes de descer o
Pacífico e dobrar o cabo Horn, teria atravessado todos os
terrenos¦¦ de pesca do Mundo. Obcecado pela sua ideia fixa,
Acab repetia para consigo: "É mesmo o diabo, se não tiver
enfim ocasião de me defrontar com Moby Dick..."
Por que razão, perguntareis, não descansaria nunca nos
portos das proximidades dos quais passávamos? Para a
tripulação matar a sede e se abastecer, contentar-se-ia então
com o ar do mar? É bom que se diga que todo o baleeiro traz no
porão água para bastantes anos, boa água clara de Nantucket,
que os marinheiros preferem a todas as águas turvas e
inquietantes da Ásia. Assim, o Pequod, que transportava
além disso um stock impressionante de víveres de todas as
espécies, não era obrigado, como a maior parte dos navios, a
parar aqui e além para renovar a sua provisão de água.
Já não estávamos longe do cabo de Java e do estreito de
Sonda. A estibordo apareciam agora falésias verdejantes e
respirávamos com delícia um ligeiro perfume a canela trazido
pelo vento. Mas, até então, nem um só cachalote. Os
nossos vigias, no entanto, tinham recebido ordem de ficarem
mais atentos do que nunca. E então, uma manhã, por volta 

83 

do meio-dia, quando acabávamos de dar entrada no estreito,
soaram, vindas dos postos de observação, algumas exclamações
entusiásticas e os nossos olhos puderam gozar o mais belo, o
mais estranho espectáculo que é possível contemplar à
superfície dos mares.
Antes de tudo, devo sublinhar que os cachalotes, desde que
são infatigavelmente perseguidos pelos baleeiros, deixaram de
se deslocar em pequenos grupos. Formam hoje imensos rebanhos.
E acontece navegar-se semanas, mesmo meses, sem avistar um
único jacto. E subitamente...
À direita e à esquerda da proa do Pequod, e a uma distância
de duas ou três milhas, subiam na límpida atmosfera do
meio-dia jactos resplandecentes, dispostos em semicírculo.
Dir-se-iam, sob a abóbada azulada do céu, as mil chaminés de
uma grande cidade. Milagre! Os cachalotes, que se dirigiam
como nós para a saída do estreito, apertavam pouco a pouco o
semicírculo, aproximando-se uns dos outros como soldados
disciplinados.
O Pequod, com todas as velas desfraldadas, lançou-se em
sua perseguição. Os arpoadores, instalados nas baleeiras,
ainda suspensas dos turcos, apertavam nas mãos os arpões e
soltavam clamores de alegria. Pois não estavam eles certos de
matar ao menos alguns daqueles animais? Além disso, porque não
havia de encontrar-se Moby Dick no meio daquele rebanho, como
o elefante branco no cortejo do rei de Sião? Ninguém podia
afirmá-lo, mas ninguém podia também assegurar o contrário. Por
isso, velas do cimo dos mastros, revelins, nada nos parecia
supérfluo para tentar alcançar o semicírculo de jactos de
vapor. No entanto, subitamente, Tashtego gritou:
- Atenção, há qualquer coisa na nossa esteira!
Voltámo-nos. Com efeito, atrás de nós havia uma outra
armada, outro semicírculo, este de espuma, formado pelas
pagaias de incontáveis pirogas!
- Depressa! - ordenou o capitão Acab. - À mastreação! Subam
os baldes e molhem as velas! Os piratas malaios perseguem-nos!
Os piratas malaios! Sim eram mesmo eles. Remavam a uma
cadência louca, na esperança de nos apanharem. Porém o Pequod,
impelido por um bom vento, não parecia resolvido a deixar-se
bater. A presença dos recém-chegados agiria sobre ele como
chicotadas e como se fosse esporeado?
A verdade é que o velho navio com um vigor renovado saltava,
empinava-se, voava. Com o óculo debaixo do braço, o capitão
Acab passeava de um lado para o outro na ponte.
Quando estava à proa, podia observar os monstros que caçava.
Quando se encontrava à popa, dava-se conta dos piratas
sanguinários que o caçavam, a ele senhor alucinado do Pequod
Impedi-lo-iam, tão perto talvez do objectivo, de alcançar a
sua presa?
Contudo, tais pensamentos não perturbavam de maneira nenhuma
os membros da tripulação. Com efeito, quando o Pequod, após
ter dobrado o cabo de Cockatou, dispersara os piratas, os
marinheiros - os arpoadores, sobretudo - não prestavam a
mínima atenção a este êxito, de tal modo estavam preocupados
com o avanço que os cachalotes pareciam adquirir sem cessar
sobre o navio. Porém não tardaram a tranquilizar-se, ao
verificar que os grandes cetáceos, sem dú vida fatigados com
aquela interminável corrida, abrandavam o andamento. Um quarto
de hora mais tarde, o capitão Acab dava ordem para lançar três
baleeiras ao mar.
Estávamos aproximadamente a uma milha dos cachalotes.
Tiveram estes consciência do perigo ao qual estavam expostos?
Bruscamente, cerraram fileiras e voltaram a pôr-se rapidamente
em fuga.
Agora envergávamos apenas as camisas e as calças. Vendo que
a nossa presa ia de novo escapar-nos, pusémo-nos a remar com
redobrada energia. A perseguição durou ainda algumas horas.
Depois de tal esforço, ver-nos-íamos forçados a abandonar a
luta e a voltar para trás? No entanto, apercebemo-nos de que o
grupo mostrava uma espécie de hesitação generalizada. Depois
foi o caos. Os cachalotes, tão disciplinados até ali, nadavam
em todas as direcções, descrevendo ziguezagues, 

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círculos irregulares e expelindo apenas jactos espessos e
curtos. Alguns, como que paralisados, tinham até parado por
completo e flutuavam à deriva. Era o pânico, este estranho e
incompreensível pânico que faz fugir cinquenta bisontes à
frente de um cavaleiro, ou que, mal uma voz gritou: "Fogo!",
impele todos os espectadores de um teatro para as portas que
dão acesso ao exterior.
Alguns cachalotes agitavam-se ainda com extrema violência.
Mas a maioria ficara imóvel e parecia mesmo incapaz de avançar
ou recuar. Como sempre, em tais circunstâncias, as baleeiras
separaram-se e cada uma escolheu um animal isolado na orla do
grupo. Três minutos depois, Queequeg lançou o arpão. O
cachalote que atingira cegou-nos com uma nuvem de espuma e,
com uma prontidão surpreendente, fugiu para o sítio onde os
seus semelhantes eram em maior número. De vez em quando,
puxava furiosamente a linha a fim de se desembaraçar do arpão,
aquela barra de ferro cravada no seu corpo. Entre os outros
cachalotes, a nossa embarcação, arrastada a toda a velocidade,
parecia um navio rodeado de icebergs e que a todo o instante
se vê prestes a ser esmagado e reduzido a migalhas.
No entanto, Queequeg conservava todo o seu sangue-frio.
Postado ao leme, manobrava com uma habilidade cheia de nobreza
ora descrevendo uma curva para se afastar do monstro que nos
barrava a passagem ora guinando para não sermos agredidos por
uma barbatana, talvez com o peso de uma tonelada. Starbuck, à
frente, distribuía generosamente golpes de lança à direita e à
esquerda. Quanto aos remadores, dos quais eu fazia parte,
também não estavam inactivos; apesar de se Lhes ter tornado
impossível utilizar os remos, Um deles gritava, dirigindo-se a
qualquer enorme cetáceo que acabava de surgir a três ou quatro
braças e ameaçava chocar connosco:
- Tira-te daí, almirante! 

86 87 

Outro, avistando um velho macho que muito perto de nós
parecia abanar-se com a formidável cauda, berrava a ponto de
despedaçar as cordas vocais:
- Então, que é lá isso, queres a nossa morte? Cauda pra
baixo, tou a dizer-te! Cauda pra baixo!
Todas as baleeiras trazem uns engenhos estranhos inventados
pelos índios de Nantucket, chamados druggs. O drugg é
constituído por dois blocos de madeira presos um ao outro.
Entre estas peças de madeira está fixada uma linha que tem na
extremidade livre uma argola à qual se pode rapidamente
ajustar um arpão. Este instrumento só se emprega quando, como
era o caso nesse dia, o barco se encontra no meio de um grupo
de cachalotes enlouquecidos. Como não se podem matar vários ao
mesmo tempo, escolhem-se alguns, aos quais por este meio se
crava o ferro na barbatana, tendo assim a probabilidade de
acabar com eles um pouco mais tarde.
A nossa baleeira estava provida de três druggs. O primeiro e
o segundo foram lançados com êxito, e pudemos seguir com o
olhar os dois cachalotes atingidos, quando fugiam rebocando os
pesados flutuadores. Porém, com o terceiro drugg as coisas
passaram-se de modo diferente. Antes de transpor a bordilha da
nossa embarcação, o bloco de madeira prendeu-se à passagem num
dos bancos, arrancou-o com um só puxão e precipitou um dos
remadores no chão do barco. Imediatamente a água infiltrou-se
pelas tábuas desconjuntadas e, para a deter, tivemos de tapar
os buracos com trapos.
Ter-nos-ia sido impossível lançar os druggs se, à medida que
penetrávamos mais no grupo, o cachalote que nos rebocava não
tivesse pouco a pouco reduzido a velocidade. Depois, no
momento em que menos o esperávamos, o arpão de Queequeg, sem
dúvida mal fixado, desprendeu-se do corpo do animal. E
vimo-nos assim a braços com este incidente no meio de uma
espécie de circo encantado. A água em que andávamos à deriva
estava perfeitamente calma, enquanto à nossa volta, bastante
longe, os cachalotes formavam círculo.
Alguns mantinham-se imóveis em grupos de oito ou dez, mas
outros galopavam à roda, tal como cavalos de circo.
Como fugir dali? Como transpor aquela parede viva?
Víamo-nos forçados a esperar que nela se abrisse uma brecha.
De vez em quando, ao centro deste estranho lago, algumas
fêmeas com as suas crias vinham visitar-nos. Aproximavam-se a
algumas braças da nossa embarcação, roçando o casco,
testemunhando-nos uma confiança Quase tocante. QueeQueg, cada
vez que era possível, fazia-lhes festas, e Starbuck
tocava-lhes ao de leve o dorso com a ponta da lança.
Enfim, a desejada brecha abriu-se diante de nós. Remando a
toda a forÇa, lançámo-nos com o coração alvoroçado na sua
direcção. Porém várias vezes falhámos. Machos enormes,
direitos a nós, davam meia volta e provocavam nas proximidades
da nossa embarcação remoinhos que pareciam tragar-nos. Aliás,
os cachalotes reagrupavam-se e não tardou que se pusessem em
marcha para leste, numa ordem mais ou menos semelhante à que
tínhamos admirado no princípio desta operação. Persegui-los
teria sido não apenas impossível, mas insensato. O Que teria
acontecido aos cachalotes atingidos pelos nossos três druggs.
Balanço do dia: um só animal morto por Flask, a certa
distância do círculo em que nos encontrávamos encerrados.
Os pescadores de baleias e de cachalotes têm razão quando
dizem: quanto mais são menos se matam! 

88 89 

X  

UM FRANCÊS: O BOTÃO DE ROSA 

Tinham passado uma ou duas semanas depois da aventura que
eu acabei de contar. Vogávamos, por volta do meio-dia, num
oceano calmo e brumoso. Por que razão as nossas narinas nesse
dia pareciam mais atentas, mais subtis do que os olhos dos
vigias? A verdade é que demos conta do seguinte: flutuava à
superfície das águas um odor desagradável.
- Aposto - disse Stubb -, que vamos ter uma surpresa. Fiquei
sempre com a impressão de que acabaríamos por encontrar os
cachalotes que atingimos outro dia com os nossos druggs.
Afinal, porque não haviam de ser impelidos até estas paragens?
Não tardou que a cortina de bruma se rasgasse como por
encanto e, bastante longe na nossa frente, apareceu um navio.
Era fácil de compreender, ante as suas velas recolhidas, que
parara para uma tarefa qualquer e tinha, preso a um flanco, um
cetáceo, baleia ou cachalote. Ao avançarmos para ele,
apercebemo-nos de que arvorava a bandeira francesa. Em volta
da sua mastreação voavam aves de rapina, prova de que o animal
capturado era sem dúvida um cadáver em decomposição, um desses
cetáceos que vogam à deriva durante semanas e semanas,
cadáveres sem sepultura, escolhos sem proprietários. Destes
monstros putrefactos desprende-se, como é natural, um odor
intolerável.
Alguns baleeiros, apesar da sua cupidez, não se resignam a
amarrar estes assustadores destroços. Porém outros mostram-se
menos delicados, não obstante o óleo proveniente dos animais
mortos ser não só mal-cheiroso, mas também de qualidade muito
inferior.
Em resumo, à medida que nos aproximávamos do baleeiro
francês víamos que tínhamos todas as razões para pensar que
não estávamos enganados: o recém-chegado tinha mesmo, amarrado
ao flanco um cetáceo... E, de repente, apercebemo-nos de que
não era um, mas sim dois! É verdade que o outro, segundo nos
parecia, era um destes animais que, vítimas de uma estranha
doença, secam antes de morrer, não ficando no seu corpo a
mínima gota de óleo...
Quando o Pequod ficou bastante próximo deste confrade que o
acaso acabava de pôr no seu caminho, Stubb exclamou:
- Olhem... Ali... Nos cabos que estão enrolados em volta da
cauda de um dos cachalotes! É o meu arpão! Reconhecê-lo-ia
entre mil! Estes franceses, que gente! Soldados valentes,
claro, e em geral bons marinheiros... quando se. Mas, trata de
pesca à baleia, ainda têm muito que aprender. Acontece-Lhes
enganarem-se como crianças e lançar ao mar as canoas por terem
tomado a crista das ondas por espuma de jactos de baleias ou
cachalote! Pois não contam que eles levam consigo
carregamentos de velas por não estarem certos de recolher,
durante a viagem, bastante óleo para o candeeiro do capitão?!
Ah! Sim, têm muito que aprender aqueles gentis papa-rãs! De
qualquer modo, aíi estão uns que se contentaram com os nossos
restos. Não são difíceis de contentar! O primeiro destes
cachalotes é um daqueles que atingimos no outro dia, com os
nossos druggs. O óleo que contém não deve valer nada. Quanto
ao outro está tão ressequido... Mas estou cá a pensar! Pode
ser que contenha alguma coisa muito mais interessante do que o
óleo: âmbar-cinzento, rapazes! Pergunto a mim próprio se o
velho pensou nisso... Valia a pena experimentar... Bem, vou
lá! 

90 91 

E, sem mais explicações, dirigiu-se para o castelo da popa e
entrou na cabina do capitão Acab.
Entretanto, uma leve brisa sucedera à calmaria podre. Cada
baforada de vento trazia-nos o cheiro cada vez mais intenso
dos cadáveres em decomposição.
Logo que voltou à ponte, Stubb reuniu a sua equipagem
pessoal, mandou lançar uma baleeira ao mar e aproximou-se do
navio estrangeiro. A proa deste último era artisticamente
esculpida. Representava uma enorme flor em botão, de um
vermelho-vivo, prolongada por uma haste verde ao longo da qual
uns pregos de cobre figuravam sem dúvida espinhos. À direita,
e um pouco abaixo da flor em botão, grandes letras douradas
formavam este encantador nome: Botão de Rosa...
Stubb tapou o nariz dizendo:
- Felizmente nem todos os botões de rosa cheiram tão mal!
Para comunicar com a tripulação, teve de contornar a roda de
proa por estibordo. Depois parou e gritou por cima do cadáver
de um dos cachalotes, sem deixar de apertar o nariz com o
polegar e o indicador:
- Ó, do Botão de Rosa! Alguém daí sabe inglês?
- Sei eu - respondeu um homem natural de Guernesey, e que
era também o imediato do navio francês.
- Bom - tornou Stubb -, vou pedir-lhes uma informação. Viram
por acaso a baleia branca?
- A baleia branca.
- Sim. A falar verdade, talvez se trate de um cachalote. Mas
cá nós chamamos-lhe Moby Dick, ou a baleia branca. Viram-na?
- Nem nunca ouvi falar disso... Um cachalote branco... Uma
baleia branca... Palavra que não. Não conheço.
- Muito bem - disse Stubb -, espere um instante. Já vou ter
consigo.
Deu meia volta e aproximou-se do Pequod. Vendo o capitão
Acab que se debruçava no coroamento do castelo da popa, pôs as
mãos em porta-voz e gritou-lhe:
- Não, capitão, eles não viram a baleia branca!
O capitão Acab abanou várias vezes a cabeça, recuou uns
passos e desapareceu. Então Stubb, como prometera, voltou para
o Botão de Rosa. Esperava-o ali um espectáculo deveras
surpreendente.
O homem de Guernesay, instalado no porta-Peias, começava a
manejar a enxada de desmembração", Mas isto não era tudo:
tinha o nariz enfiado numa espécie de saco.
- O que é que Lhe aconteceu? - perguntou Stubb. - Partiu o
nariz?
- Isso queria eu, e ficaria até contente se não tivesse
nariz! - respondeu o imediato do navio francês continuando a
trabalhar na atitude de um operário que não está nada
interessado na tarefa. - E você porque é que está a apertar o
seu com o polegar e o indicador?
- Eu? - disse Stubb. - Oh!
Por nada... E até lhe posso dizer: tenho um nariz de cera...
Belo dia, não acha? parece que estamos num jardim cheio de
flores. E se me atirasse um raminho de botões de rosa? Seria
muito amável da sua parte.
O homem de Guernesay, percebendo que troçavam dele,
encolerizou-se.
- Ora diga, o que é que está aí a fazer?
- Calma, amigo, calma! - Replicou Stubb. , Porque é que não
põe esses dois animais no gelo para trabalhar mais comodamente
neles? Mas, basta de brincadeiras, você sabe que é uma loucura
esperar tirar óleo de um cachalote como esse com o qual está a
ter tanto trabalho. Quanto ao outro, o ressequido, á séculos
que não tem nada!
- Como se eu não soubesse isso! - exclamou o homem de
Guernesey -, Mas, compreende, o nosso capitão não acredita no
que eu digo. É a sua primeira viagem. Antes fabricava
água-de-colónia. Mas porque não sobe a bordo? Talvez tenha
mais confiança em si do que em mim. E, assim, ficaria livre
deste trabalho repelente...
- Estou pronto a todos os sacrifícios para lhe agradar! 

92 93

- respondeu Stubb. E, em poucos segundos, subiu à ponte do
Botão de Rosa.
A cena que então se lhe deparou aos olhos tinha qualquer
coisa de estranho. Os marinheiros, com bonés de borlas de lã
vermelha, preparavam os pesados guindastes para as baleias.
Mas, conversando uns com os outros, trabalhavam com lentidão e
pareciam de muito mau humor: estavam todos de nariz no ar. De
vez em quando, alguns largavam as correntes que prendiam os
guindastes e subiam à mastreação para respirar um pouco de ar
puro. Outros, persuadidos de que iam contrair a peste,
mergulhavam um tampão de estopa num pote de alcatrão e
comprimiam-no sobre o nariz. Alguns, para escapar aos miasmas
de que a atmosfera estava carregada, puxavam grandes fumaças
dos cachimbos e envolviam-se numa nuvem de fumo.
Ouvindo exclamações entrecortadas de pragas, Stubb voltou-se
para o castelo da popa e viu um homem com ar furioso que saía
da cabina do capitão. Era o médico de bordo. Acabava de fazer,
aliás inutilmente, observações ao capitão sobre a tarefa em
que estava ocupada a tripulação.
Depois de ter notado estes pormenores, Stubb pensou:
"Ora é isto mesmo que convém! Em suma, as coisas neste navio
não parecem andar muito bem. Claro, simpatizo com os
franceses, e até encontrei entre eles muitos tipos fixes. Mas,
hoje, na guerra como na guerra!"
Tomou de parte o homem de Guernesay e esteve a conversar com
ele durante uns instantes. Compreendeu então que o imediato do
Botão de Rosa detestava o seu capitão, porque este, ao
contrário da maior parte dos oficiais daquela nacionalidade,
era não só ignorante, mas vaidoso, e também porque arrastara
os companheiros numa aventura estúpida e sem proveito...
Prosseguindo na conversa com o homem de Guernesay, Stubb
apercebeu-se de que este nem sequer pensava no
âmbar-cinzento... Não fez pois qualquer alusão a esta preciosa
substância. Mas, quanto ao mais, mostrou-se franco, directo. 

94 

De modo que, momentos depois, os dois confrades tinham
arquitectado um pequeno e inocente complot que lhes permitiria
ludibriar o capitão, sem lhe deixar a menor dúvida acerca da
sua sinceridade. Os papéis eram assim distribuídos: o homem de
Guernesay, servindo de intérprete, contaria ao seu superior
uma história imaginada, e Stubb expressando-se naturalmente na
sua língua materna, diria todas as frivolidades que lhe
passassem pela cabeça.
Neste momento, o capitão do Botão de Rosa saiu da sua
cabina. Baixo e moreno, parecia demasiado frágil para um
marinheiro. Mas, sem dúvida para aparentar um aspecto mais
imponente, exibia compridos bigódes e grandes suíças.
Vestia um blusão de veludo de algodão vermelho e um colete
cuja algibeira estava enfeitada com um cacho de berloques. O
mais delicadamente possível, o homem de Guernesay
apresentou-lhe Stubb. Depois voltando-se para este último.
- Então, o que é que eu lhe digo?
- Bem - disse Stubb, olhando com uma certa ironia para o
blusão de veludo vermelho e os berloques -, comece por lhe
dizer que não há melhor como bebé bochechudo do que ele, salvo
o devido respeito, claro!
O homem de Guernesay fingiu que traduzia.
- Capitão - disse -, o oficial do Pequod aqui presente,
assegura que ontem o seu navio se cruzou com outro navio cujo
capitão e o imediato e ainda seis marinheiros acabavam de
morrer de uma febre contraída ao manipularem uma baleia podre.
Ao ouvir estas palavras, o capitão não conseguiu dominar um
estremecimento:
- Pormenores! - disse ele. - pormenores!
- Então o que quer que lhe digo agora? - perguntou o homem
de Guernesay, dirigindo-se a Stubb.
- Já que ele parece ter enfiado o barrete, diga-lhe que ele
não me parece mais qualificado - continuou Stubb -, para
comandar um baleeiro do que um macaco de Santiago! 

95 

- Capitão - tornou o homem de Guernesay, imperturbável -, o
senhor Stubb jura que o cachalote ressequido é tão perigoso
como o outro, o que está podre. Aconselha-nos a
desembaraçar-nos sem demora destas duas carcaças se temos amor
à vida.
Como via as barbas a arder, o capitão deu bruscamente meia
volta, precipitou-se para a proa do Botão de Rosa e, em voz
atroadora ordenou que não içassem mais os guindastes e que
soltassem os cabos e as correntes que prendiam os cachalotes
ao navio.
Quando o capitão voltou para junto dos dois confrades, o
homem de Guernesay perguntou a Stubb:
- Que mais posso fazer por vocês e por nós?
- Ora vejamos... Deixe-me pensar - respondeu Stubb. - Pois
bem, diga-lhe que estou muito satisfeito por tê-lo levado à
certa...
E, intimamente, acrescentou:
"Mas não foi apenas este capitão cretino que levei à
certa..."
Entretanto, o homem de Guernesay voltava-se já para o
capitão:
- O senhor Stubb afirma que fica feliz por nos ter prestado
um serviço.
Em francês, o capitão respondeu:
- E eu, senhor, estou-lhe infinitamente grato. Quer vir até
à minha cabina? Teria um grande prazer em oferecer-lhe um copo
de bordeaux.
O homem de Guernesay voltou-se para Stubb.
- O capitão agradece-lhe e gostaria de lhe oferecer um copo
de vinho.
- Agradeça-lhe - disse Stubb, rindo à socapa -, e acrescente
que é contrário aos meus princípios beber com pessoas que
enganei. De resto tenho de me ir embora.
- Capitão - traduziu o homem de Guernesay -, o senhor Stubb
nunca bebe vinho. Mas oiça agora o mais importante: ele
aconselha-o, se quer voltar a ver o Sol amanhã, a lançar
quatro canoas ao mar e a rebocar o seu navio para tão longe
quanto possível destas repugnantes carcaças. Com esta calma
quase completa que temos hoje, é de prever que não se afastem
sozinhas...
Mas Stubb, achando que a brincadeira já durara de mais,
saltara já o filerete. Mal pôs o pé no seu escaler gritou
dirigindo-se ao homem de Guernesay:
- Com o meu cabo, vou ajudá-lo a desembaraçar-se do
cachalote mais leve!
Dito e feito. Momentos mais tarde as quatro baleeiras
francesas puxavam o navio para um lado, e o prestável Stubb
começava a rebocar, em sentido contrário, um dos cachalotes.
Soprava agora um vento fraco. Stubb fez menção de desamarrar
o cachalote. Mas já o navio francês, depois de ter recuperado
as baleeiras, se afastava a todo o pano... Enquanto o Pequod
habilmente se introduzia entre ele e a enorme carcaça. Vendo
que tinha o campo livre, Stubb decidiu recolher logo o fruto
do seu ardil. Muniu-se de uma enxada bem afiada e fez um
buraco no corpo do cetáceo, por trás da barbatana lateral.
Parecia querer abrir uma cave no próprio oceano. A enxada
atingiu as costelas. Dir-se-ia pelo ruído produzido, que tinha
batido em loiça de barro enterrada numa massa de argila. Todos
os homens da tripulação debruçados no filerete do Pequod
seguiam esta operação com um interesse apaixonado:
pesquisadores de ouro assistindo à extracção de uma pepita!
E continuamente, à volta da carcaça, voavam aves mergulhando
e lutando entre si. Entretanto, Stubb parecia começar a perder
a coragem. Poderia aguentar ainda muito tempo respirando
aquele fedor infernal que quase o sufocava? Mas, de súbito,
naquele turbilhão de odores fétidos sentiu um perfume ligeiro,
agradável, tenaz, semelhante àqueles riachos que se lançam nas
ribeiras e resistem muito tempo antes de misturar com elas as
suas águas...
- Achei! Achei! Vitória! - gritou Stubb. 

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Largando a enxada, mergulhou as duas mãos no cachalote e
retirou de lá alguns punhados de uma substância semelhante ao
sabão ou, melhor ainda, a queijo estriado como o mármore - um
queijo oleoso e de perfume delicado, cuja cor oscilava entre o
amarelo e o cinzento, e que facilmente se podia riscar com uma
unha. E esta substância era o âmbar-cinzento. Deste produto
mole como a cera desprende-se um odor de especiaria e por isso
entra na fabricação dos produtos de perfumaria, de pastilhas
para queimar, de velas de luxo, de pós capilares, de pomadas.
Com gestos febris, Stubb retirou dali aproximadamente seis
punhados, e teria feito uma colheita muito mais abundante se
de súbito o capitão Acab, sempre com a ideia fixa de levar por
diante a perseguição de Moby Dick, não tivesse gritado,
debruçando-se no varandim do Pequod:
- Venha para bordo, Stubb! Senão, vou-me embora e deixo-o
aí!
Esqueci-me de dizer que se encontraram no âmbar-cinzento do
cachalote subtraído ao Botão de Rosa umas placas ósseas, de
forma oval. Primeiro Stubb pensou que se tratasse de botões de
calções. Mas, depois de examinadas, viu-se que aqueles
pretensos botões de calções não eram mais do que minúsculos
ossos de choco.
E agora perguntareis: como é que este âmbar-cinzento, de
perfume tão delicado, pôde conservar-se intacto nas entranhas
de uma tão repugnante carcaça? Não parece haver aí, com
efeito, qualquer coisa de miraculoso? Mas lembrai-vos do que
São Paulo dizia aos Coríntios sobre a corrupção e a
incorruptibilidade, a respeito do destino do homem, que é de
elevar-se, pela virtude, da mais baixa condição até à pureza
mais indestrutível. Lembrai-vos de que a água-de-colónia antes
de ser um perfume é um produto dos mais nauseabundos do Mundo.
Não queria terminar este período sem negar uma acusação de
que os baleeiros frequentemente são alvo, tal como: que são os
homens menos cuidadosos, mais sujos da criação. 

98 

Penso que esta acusação tem pelo menos dois séculos, isto é
que remonta à época em que os primeiros baleeiros
gronelandeses lançaram âncora no porto de Londres. Ao
contrário dos baleeiros dos países meridionais, os
gronelandeses nunca foram capazes de resolver-se a ferver o
óleo dos cetáceos mesmo no decurso da própria campanha.
Limitam-se a cortar em pedacinhos o toucinho das baleias,
guardando-o logo em tonéis. Resultado: quando chegam ao seu
porto, a carga exala um cheiro tão horroroso como o de um
cemitério revolvido por um cataclismo.
Porém nós, pescadores dos mares do Sul, utilizamos, como se
verá mais adiante, outros processos mais modernos e mais
seguros. E a verdade é que as baleias, vivas ou mortas não são
mamíferos mais mal-cheirosos do que os outros.
Acreditam, se eu afirmar, que a cauda do cachalote, ao
chicotear a atmosfera acima das vagas, espalha um odor
comparável ao almíscar com o qual as senhoras perfumam os seus
vestidos de cetim que fazem roçagar com secreta alegria no
conforto dos seus salões?
Em suma, não me faltou muito para comparar cada cachalote
àquele ilustre elefante, com presas adornadas de pedras
preciosas, e o corpo impregnado de mirra que os habitantes de
uma cidade hindu, no desejo de agradar ao seu vencedor
enviaram outrora ao encontro de Alexandre, o Grande. 

99  

XI 

O RÉPROBO 

Se a memória não me atraiçoa, já vos falei do minúsculo
Pip, aquele pobre negro do Alabama que fazia parte da nossa
tripulação. Mas comecemos pelo princípio. Uns dias depois de
termos pregado aquela boa partida que vós sabeis aos nossos
amigos franceses do Botão de Rosa, fomos testemunhas e actores
de um acontecimento deplorável, no qual alguns viram uma
espécie de prefiguração do destino que esperava o Pequod.
A bordo de um baleeiro, nem todos os marinheiros fazem parte
das tripulações das chalupas. Alguns, enquanto os companheiros
perseguem cachalotes e baleias, asseguram a manobra e a guarda
do navio. São tão fortes, tão hábeis como os outros. No
entanto, os fracos e os medrosos vêem-se também impedidos de
ir para o mar nas chalupas e participar na captura dos
cetáceos. Tal era o caso do negrinho Pippin, a quem chamávamos
Pip.
Pip e o steward Dough-Boy (já viram este último levando ao
capitão Acab o rum destinado a encher os ferros dos arpões e
das lanças) formavam, embora de cor diferente, uma espécie de
par ideal. Dir-se-iam dois póneis, um branco e o outro preto,
atrelados ao mesmo carro. No entanto, enquanto Dough-Boy era
lento e bastante taciturno, Pip, no fundo um cobardolas,
demonstrava em tudo uma espantosa vivacidade de espírito, 

100

e também aquela espontaneidade que é própria de uma raça mais
propensa a saborear o prazer do que as outras. Pois não
afirmam que se os povos de África tivessem mais liberdade de
acção fariam de todos os dias do ano dias de festa e de
repouso? Enfim, não sorriam quando eu digo que o pequeno Pip
resplandecia de luz. Não é o ébano de todas as madeiras, uma
das que captam melhor os raios do Sol? Infelizmente, Pip
gostava demasiadamente da vida isto é, da calma, do descanso,
da segurança. Assim, desde que cometera a loucura de se
alistar no Pequod, sem prever que haviam de lhe ser atribuídas
tarefas estafantes, perdera muito do seu brilho. Mas é tempo
de voltarmos à nossa história.
Ora aconteceu que, no dia em que se passou o episódio do
âmbar-cinzento, como o remador de popa de Stubb entalara uma
das mãos, Pip foi designado para o substituir até que se
curasse.
Quando ocupou o seu lugar na baleeira do primeiro-tenente,
Pip, apesar de bastante nervoso, arranjou maneira de não
entrar em contacto directo com o cachalote e saiu-se menos mal
da aventura. Todavia, Stubb, que estivera a observá-lo,
disse-lhe:
- Acho-te um bocado mole. Faz por mostrar mais coragem,
porque é de coragem que tu vais precisar frequentemente.
Da segunda vez, Pip empregou toda a sua força nos remos.
Quando a baleia foi arpoada, deu o habitual sacão mas tão
perto da baleeira que Pip foi levantado do banco como uma pena
e arrastado borda fora, pois a linha, ao afrouxar,
enrolara-se-Lhe à volta do corpo e fizera-o perder o
equilíbrio. Nesse momento a baleia, refeita da surpresa,
afastou-se a toda a velocidade rebocando na sua esteira o
infeliz negrito.
Tashtego, o arpoador índio, estava à proa. Desprezava Pip
pela sua pusilanimidade. Pegando logo numa faca, pousou a
lâmina sobre a linha e, voltando-se para Stubb: 

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- Corto? - perguntou ele.
Pip debatia-se desesperadamente e, no seu rosto azulado pelo
medo, as pupilas pareciam gritar: "Sim, corte, corte, por amor
de Deus!"
Naturalmente, esta cena não durou mais de meio minuto.
- Imbecil! - rugiu Stubb. - Sim, Tashtego, corte!
Assim Pip foi salvo, mas perdera-se a baleia.
Quando voltou a si, o infortunado negrinho viu-se alvo dos
sarcasmos e das censuras da tripulação. Ao acalmar aquele
violento concerto, Stubb, por sua vez, passou uma
descompostura a Pip. Depois, acrescentou:
- Lembra-te disto: para a próxima vez, não faço nada para te
repescar. Não podemos permitir-nos perder baleias para salvar
indivíduos tão pouco interessantes como tu. O mais ínfimo
cachalote vale trinta vezes mais que a tua fraca pessoa.
Então, estamos entendidos? Tens de agarrar-te à baleeira. E
não voltas a saltar, está bem?
Pip jurou tudo o que quiseram. No entanto, saltou de novo -
prova de que nós todos estamos nas mãos dos deuses. Sim, Pip
saltou de novo, em circunstâncias bastante semelhantes às da
sua primeira aventura. Porém, desta vez, conseguiu
desembaraçar-se da linha. Contudo, enquanto o cachalote
arrastava a baleeira, deixaram-no desembaraçar-se sozinho,
pois Stubb parecia resolvido a manter a sua palavra. Estava um
belo dia claro e azul. O mar espraiava-se até ao infinito como
uma imensa folha de ouro. Sobre esta folha de ouro, a cabeça
negra de Pip lembrava um cravo-da-índia. Quando o negrito foi
projectado borda fora, Tashtego meteu a faca na bainha e Stubb
voltou as costas com ar de desdém. Aliás, o cachalote parecia
ter asas. Em três minutos, a baleeira e o náufrago estavam
pelo menos a meia milha marítima um do outro. Mantendo-se
muito dificilmente à superfície, Pip voltava de vez em quando
os olhos para o Sol e não podia deixar de comparar a sua
solidão à do grande astro luminoso. 

102 

Talvez não saibam que é tão fácil nadar em pleno oceano como
passear na cidade, num carro com boas molas. O que é
intolerável é a solidão, a impressão de não se ser mais do que
um ponto quase invisível num incomensurável deserto líquido.
Os marinheiros bem o sabem. E quando tomam banho, mesmo com
tempo calmo, nunca se afastam do seu navio.
Tinha então Stubb verdadeiramente abandonado o pobre
negrinho à sua sorte? Não. Pelo menos não era essa a sua
intenção. Pensava que as duas outras embarcações encontrariam
Pip e o apanhariam. É certo que os baleeiros têm pelos
poltrões uma aversão semelhante à dos soldados do exército e
dos marinheiros da marinha de guerra. Porém os pescadores de
cetáceos não esquecem nunca que lhes aconteceu também a eles
sentir medo e isso no fim de contas torna-os mais indulgentes.
Infelizmente, neste caso particular, as baleeiras não viram
o náufrago. Melhor: avistando cachalotes viraram logo de bordo
e lançaram-se em sua perseguição. Pip julgou-se perdido, tanto
mais que o barco de Stubb, longe de dar meia volta, continuava
a dirigir-se para o horizonte. E nem por um acaso
providencial, foi o próprio Pequod que o socorreu salvando-lhe
a vida. Mas, a partir daquele dia, o negrinho passava os dias
errando pela ponte em passo de sonâmbulo.
Não tardaram a considerá-lo como louco. Com cruel ironia o
mar, embora Lhe salvasse o corpo arrebatou-lhe a alma ou
melhor, uma parte da alma. Pip tinha visões. Distinguia por de
trás do écran dos seus olhos tristes formas estranhas e mesmo
milhões de insectos misteriosos que dão origem ao coral. Via o
pé de Deus no tear onde é tecido o universo e como assim o
proclamava, os companheiros riam-lhe na cara e chamavam-Lhe
idiota. Assim, a loucura humana não é mais do que um reflexo
da sabedoria divina. Assim o homem, cada vez que rompe com
todo o interesse terreno atinge o pensamento de Deus, o qual,
julgado pela fria e medíocre razão, parece tomar então as
aparências do desregramento e do absurdo. 

103 

Uma palavra mais: não sejam demasiadamente severos com
Stubb. Semelhantes aventuras são frequentes no decurso das
campanhas de pesca à baleia. Mais adiante, ver-se-á que fui,
também, abandonado à minha sorte, tal como o pobre Pip.
A baleia arpoada por Tashtego, e cuja captura ia custando a
vida a Pip, foi colocada no flanco do Pequod. Terminadas a
amarração e a desmembração, começou-se a esvaziar o crânio, a
que chamávamos o tonel de Heidelberg.
Enquanto alguns marinheiros executavam esta tarefa, outros
erguiam do chão e levavam as grandes selhas cheias de
espermacete ou o branco-de-baleia. Colocavam-nas diante de
nós, pois, pela primeira vez, eu fazia parte da terceira
equipa, aquela que está encarregada de um trabalho mais
delicado que qualquer outro, o qual precede a última
transformação nas caldeiras. O nosso papel consistia em
manipular a preciosa substância, esmagando os grumes que
continha, até ficarem tão líquidos como o resto. Ocupação
quase agradável, após os pesados trabalhos de que fora
encarregado desde que fazia parte da tripulação do Pequod! E
dizia para comigo: "Como isto é macio, claro, oleoso! Não
admira que o branco-de-baleia tenha sido outrora um cosmético
muito apreciado..."
Eu estava sentado na ponte, de pernas cruzadas, e
felicitava-me por ter acabado por esse dia com a fatigante
tarefa do cabrestante. Sob o céu de um azul sereno, o navio,
com o velame levemente enfunado, deslizava sem sobressaltos
nas ondas. Eu mergulhava as mãos na selha, onde o
branco-de-baleia, recolhido havia menos de uma hora, começava
a coagular. Esmagava massas tão macias como cachos de uvas
demasiadamente maduras, massas tão perfumadas, juro, como
violetas na Primavera. Tinha a impressão de viver não no seio
de um oceano deserto, mas numa pradaria odorífera. Esquecera
completamente o terrível juramento que o capitão Acab nos
arrancara. Pouco a pouco os meus dedos tornavam-se leves como
enguias e tal como as enguias parecia-me que eles se enrolavam 

104

sobre si próprios, serpenteavam, ondulavam. Paracelso,o
ilustre sábio suíço do século XVI não achava que o espermacete
possui a virtude de apaziguar a cólera? A verdade é que, desde
que as minhas mãos mergulhavam naquele banho miraculoso,
sentia-me como que liberto de toda a amargura, de toda a
violência e crueldade. Apertar! Comprimir! Esmagar!... Durante
aquela manhã posso dizer que me perdi no branco-de-baleia ao
ponto de se apoderar de mim uma estranha loucura. Surpreendi-
me muitas vezes confundindo as mãos dos meus companheiros com
os macios grumes do espermacete. Um sentimento afectuoso,
amigável e terno invadira-me a alma e não podia deixar de
olhar aqueles que me rodeavam sem suspirar no meu íntimo:
"Quero-vos muito. Amamo-nos todos uns aos outros, não é
verdade como a vida é bela!" E, em seguida, aconteceu-me,
várias vezes, ver desfilar nos meus sonhos nocturnos
intermináveis procissões de anjos que levavam aos ombros
jarros cheios de branco-de-baleia.
Mas voltemos à realidade. É tempo de vos falar de certas
partes do cachalote tal como se apresentam antes de serem
lançadas nas caldeiras. Em primeiro lugar temos o «cavalo
branco». Trata-se da parte mais espessa da cauda, um
prodigioso molho de músculos e tendões que, apesar da sua
dureza, nos esforçamos por esmagar, pois contém um pouco de
óleo. Depois de ter sido cortado, o «cavalo branco» é
repartido em longos pedaços semelhantes a blocos de mármore,
que os homens depois cortam à faca.
O plum-pudding - lâminas de carne aderentes aqui e ali
à carapaça de toucinho - é uma coisa muito agradável à vista.
Como o bolo do mesmo nome, é de várias cores, com estrias de
uma brancura ofuscante ou amarelo-dourado, sobre
um fundo de pontinhos carmesim e púrpura. Estes pontos
lembram ameixas vermelhas entre limões e têm um aspecto
tão apetecível que sentimos uma dificuldade imensa em não
os levar à boca. Devo confessar que um dia me aconteceu
esconder-me atrás do mastro do traquete para provar aqueles
estranhos frutos do mar. 

105 

O seu sabor - pelo menos assim o imagino - é semelhante ao
que devia ter um assado à mesa de Luís, o Gordo - admitindo
ainda que este assado tenha sido cortado de um cabrito morto
numa boa estação de caça, pois decerto não ignorais que as
estações de caça, tais como os anos de bons vinhos, não são
todas igualmente boas.
Poderia ainda falar-vos de certos pedaços de qualidade
inferior, por assim dizer, tais como o slobgollion, o gurry, o
nipper. Mas isso levar-nos-ia demasiado longe. Acho que vale
mais pedir-lhes que me acompanhem à câmara do toucinho, esse
porão ao qual já fiz alusão e onde são enroladas lado a lado
as tiras de toucinho tiradas do corpo do cachalote. Eis
chegado o momento de partir as tiras de toucinho. Espectáculo
que os noviços acham sempre horroroso, sobretudo se são
convidados a vê-lo depois do cair da noite. Este trabalho é
feito por dois marinheiros, à luz de uma lanterna. Um empunha
um gancho, o outro uma enxada de desmembrar. O primeiro
engancha uma tira de toucinho e esforça-se por mantê-la
imóvel, enquanto o navio baloiça ou arfa. O segundo salta
sobre a tira e corta-a em pedaços que um homem pode levar às
costas. Os pés do homem da enxada estão descalços, e a matéria
em cima da qual estão assentes não tarda a revelar-se
perigosamente escorregadia... Na penumbra, os erros são
frequentes. Com um só golpe desastrado, o homem da enxada
amputa por vezes vários dedos dos pés. E isto explica que os
dedos dos pés sejam raros entre os veteranos da câmara do
toucinho. Subamos à ponte. Apresento-vos o homem do machado.
Instalado perto do castelo da proa, desenrola, com a ajuda de
dois companheiros, um pedaço de tira que acaba de ser cortado
na câmara do toucinho. Tira-lhe depois a pele escura, tal como
um caçador africano esfola uma boa, depois corta o toucinho e
lança os pedaços num balseiro colocado junto dele. Na
realidade, deve chamar-se-lhes fatias e não bocados, e fatias
tão estreitas quanto possível, única maneira de obter um óleo
abundante e de boa qualidade. 

106 

E Os baleeiros americanos não são reconhecíveis apenas pelas
chalupas suspensas dos turcos, mas também pelas caldeiras.
Curiosa arquitectura, que alia ao carvalho e ao cânhamo a mais
robusta alvenaria. Imaginem fornos de tijolos construídos
sobre tábuas.
As caldeiras estão instaladas entre o mastro do traquete e o
mastro grande, na parte mais espaçosa da ponte. Abaixo delas
as traves do cavername são bastante resistentes para suportar
uma massa de cimento e de tijolos com a largura de dez pés por
oito e a altura de cinco pés. Naturalmente não pode tratar-se
de fundações. Substituíram-nas por possantes joelhos de ferro
que por todos os lados, seguram as caldeiras e as fixam
solidamente à ponte.
No Pequod havia duas caldeiras. Eram rodeadas por uma
espécie de revestimento de madeira e tinham em cima um painel
em plano inclinado. O interior tinha uma capacidade de várias
toneladas. Nos períodos em que não eram utilizadas, a
tripulação tratava delas com os maiores cuidados.
Limpava-lhes o interior com esteatite e areia até que este
ficasse tão reluzente como a prata das tigelas de ponche.
Durante o quarto de noite alguns marinheiros, menos
conscienciosos que os outros, introduziam-se nelas para fazer
uma soneca. De dia, os que estavam encarregados da limpeza
aproveitavam-se desta situação para passar a cabeça pelo
orifício superior a trocar confidências. Foi na caldeira da
esquerda, um dia em que eu estava de serviço, que fiz uma
descoberta. Tendo deixado cair por descuido o meu pedaço de
esteatite, impressionou-me este facto notável: todo o corpo
deslizando ao longo de uma ciclóide desce no mesmo espaço de
tempo de qualquer ponto.
Quando se retira a placa protectora, fica-se frente a frente
com a fornalha, colocada, como é natural, sob a própria
caldeira. Cada fornalha é fechada por pesadas portas de ferro
e isolada da ponte por um reservatório de água que é renovada
por meio de um tubo, à medida que se evapora. Não há chaminés.
São substituídas Por buracos abertos na alvenaria da parede
posterior. 

107 

Mas voltemos um pouco atrás.
Eram aproximadamente nove horas da noite quando foram acesas
as caldeiras pela primeira vez desde o início da nossa viagem.
Era a Stubb que cabia a honra de dirigir a operação.
- Então, está tudo a postos? Bem, tu aí cozinheiro! Acende!
O acender das fornalhas foi tanto mais fácil que, desde que
partíramos de Nantucket, o carpinteiro de bordo não parara de
enchê-las com cavacos. Pormenor que é bom sublinhar: no
decurso de uma campanha de pesca à baleia, o primeiro fogo
acende-se com madeira. Depois mantém-se com toucinho seco que,
nesta circunstância, recebe o nome de resíduos ou coscorões.
Assim, baleias e cachalotes fornecem eles próprios o
combustível destinado a consumar a sua destruição... Porém
vingam-se cruelmente, envolvendo as caldeiras numa nuvem de
fumo que lembra o das fogueiras fúnebres que os hindus acendem
nas margens do Ganges.
À meia-noite, o trabalho estava no auge. Já nos tínhamos
desembaraçado da carcaça. Com o vento cada vez mais fresco,
içáramos várias velas. As trevas selvagens do oceano
rodeavam-nos, trespassadas de vez em quando pelas chamas que
brotavam dos buracos negros de fuligem e que revelavam em toda
a sua altura o esqueleto da enxárcia. O Pequod, como que
atraído pelo seu destino, avançava àquele andamento
circunspecto, implacável, como era decerto o dos navios do
intrépido Canaris quando, transformados em brulotes, se
lançaram em plena noite sobre as fragatas turcas e as
incendiaram. (1)
Retirados os painéis, os quatro arpoadores, munidos de
forcados, começaram a lançar pedaços de toucinho para as
caldeiras. Ajoelhados a seus pés, alguns marinheiros ateavam
as fornalhas. 

*1 Alusão às façanhas do ilustre marinheiro grego Canaris
(1790-1877), na luta para libertar o seu país do jugo turco.
(N. do T.)  

108

O fumo subia, desenrolando sombrias volutas. A cada movimento
do navio, o óleo em ebulição levantava-se, como se quisesse
saltar à cara dos arpoadores.
Um pouco afastados, os homens de quarto passeavam em volta
do cabrestante e, de vez em quando, paravam para contemplar
esta cena infernal, até que o vermelho fulgor das chamas Lhes
queimava as pálpebras. Nas suas faces barbudas e enegrecidas
pelo fumo, os dentes desenhavam um traço de uma brancura
bárbara. Com entoações alegres e palavras por vezes
grosseiras, contavam histórias ímpias ou terríficas.
E os seus risos elevavam-se ao ritmo das chamas das duas
fornalhas. Os arpoadores andavam de um lado para o outro
gesticulando e brandindo os forcados. O vento bramia, o oceano
agitava-se, o barco gemia, estalava, empinava-se, erguia-se,
sem deixar no entanto de lançar sempre para mais alto nas
trevas as duas colunas flamejantes, sem deixar de triturar, na
sua bocarra desdenhosa, os últimos ossos, os últimos pedaços
de toucinho do cachalote. Assim, com aquela tripulação
primitiva e os braseiros onde o monstruoso cadáver acabava de
consumir-se, o Pequod parecia encarnar uma alma devastada por
uma ideia fixa: a alma do capitão Acab.
Foi pelo menos esta a comparação que me veio ao espírito.
Desempenhando, devido à circunstância, as funções de
timoneiro, eu tinha a impressão de conduzir a marcha de um
navio em chamas. Mergulhado eu próprio na obscuridade
distinguia melhor os meus companheiros, e as suas silhuetas
diabólicas sobre o écran vermelho das fornalhas faziam
desabrochar ante os meus olhos visões tão fatigantes que não
tardei a deixar-me invadir pela inexplicável letargia em que
sempre mergulhava por volta da meia-noite, todas as vezes que
estava ao leme.
Porém, nessa noite, fui protagonista de um incidente que me
deixou bastante confuso. Tendo-me deixado adormecer, sem
dúvida, por uns minutos, acordei repentinamente em
sobressalto. E tive imediatamente a impressão de que acabava
de cometer um erro irreparável. A cana do leme - lembram-se
que era feita de um maxilar de cachalote -, 

109

batia-me nas costas, e as velas, descontroladas, começavam a
estalar ao vento. Apesar de ter os olhos abertos (para ter a
certeza disso, tocara as pálpebras com as pontas dos dedos),
não via nada, não distinguia absolutamente nada. A agulha, a
carta iluminada pelo candeeiro da bitácula: tudo parecia
ter-se volatilizado. Na minha frente, estendiam-se umas
trevas, onde tremeluziam por vezes clarões vermelhos. Para
onde íamos? Preparávamo-nos para nos lançar sobre quê?
Aterrorizado, precipitei-me para o leme, murmurando:
- O que é que me deu? Terei enlouquecido também?
Percebi então o que se passara. Durante o meu curto sono,
dera uma volta, ficando, sem o saber, de frente para a
retaguarda do navio e voltando as costas não somente à proa,
mas também à bitácula. Num abrir e fechar de olhos voltei à
posição correcta. Mesmo a tempo de impedir que o navio se
voltasse em sentido contrário e que até se virasse talvez. Que
alívio quando me senti livre daquela estranha alucinação!
E, sobretudo, com que ardor agradeci ao Céu! Pois, como
teria podido, sem um milagre, anular aquela armadilha
evidentemente preparada pelo demónio das profundezas?
Irmão, quem quer que sejas, não olhes nunca durante muito
tempo o rosto obsidiante do fogo. Quando tiveres nas mãos a
cana do leme, não sonhes, não sonhes nunca. Livra-te de voltar
as costas à agulha. O leme é sempre nervoso e sensível:
submete-te às suas mínimas advertências. A noite é uma fonte
de erros, e o fogo artificial deforma os seres e as coisas. As
únicas chamas que não mentem, as únicas nas quais tens o
direito de depositar confiança, são as do glorioso Sol.
Se, afastando-vos das caldeiras, tivésseis alcançado o porão
do castelo de proa, julgar-vos-íeis num desses santuários
profusamente iluminados onde os soberanos mortos prosseguem no
seu último sono. Ali dormiam, com efeito, sob uma abóbada
formada por três painéis de carvalho, os marinheiros que não
estavam de quarto e, acima das suas pálpebras cerradas,
baloiçavam-se umas vinte lâmpadas reluzentes.
Nos navios mercantes, o óleo de iluminação é tão raro para
os marinheiros como os ovos frescos. Todos têm de se vestir e
despir no escuro, comer no escuro, tropeçar no escuro, para
chegar ao beliche ou à rede. Porém nos baleeiros, visto
fabricarem eles próprios o óleo de que precisam, nunca falta
luz aos marinheiros. Sem mais cerimónias, tal como se se
tratasse de um barril de cerveja, chegam junto do refrigerador
de cobre, colocado perto das caldeiras, e enchem a sua lâmpada
- a maior parte das vezes um simples frasco ou uma velha
garrafa. Queimam assim um óleo puro, em estado bruto, de
notável fluidez, e tão oleoso como a manteiga proveniente do
leite das vacas que pastam a fresca erva de Abril.
Já vos contei como se avistam, dos postos de observação, os
grandes leviatões, como se perseguem e se matam, como se
desmembram e se decapitam, como são cozidos pedaço a pedaço
nas caldeiras. Resta-me mostrar-lhes como se passa o óleo para
os tonéis e como se descem estes tonéis ao porão.
Ainda tépido como ponche, o óleo é vazado nos tonéis de seis
barrels. (1) Se a operação é executada em plena noite e se,
nessa altura, o navio é sacudido por um mar agitado, os
enormes tonéis por vezes escapam-se, tombam e põem-se a rolar
pela ponte, em todos os sentidos, como que tomados de loucura.
Os marinheiros lançam-se atrás deles, perseguem-nos,
imobilizam-nos e, por fim, munidos de martelos, pregam-lhes em
volta do bojo sólidos círculos de ferro.
Vazada a última gota e arrefecido o líquido, abrem-se as
escotilhas. O navio, como que desventrado, mostra, então, 

*1 Medida de capacidade de cento e cinquenta litros
aproximadamente. Os tonéis de que fala o autor tinham, pois,
uma capacidade de mais ou menos novecentos litros. (N. do T.) 

110 111

as suas escuras entranhas, e os tonéis, um a um, são descidos
para o porão reservado para esse fim. Terminado este trabalho,
fecham-se hermeticamente as escotilhas.
Numa campanha de pesca aos cetáceos, eis agora um dos
pormenores aparentemente insignificante, mas que foi talvez
dos que mais me chocaram. Um dia a ponte escorre sangue e
óleo. No sacrossanto castelo da popa, os pedaços da cabeça da
baleia ou do cachalote amontoam-se numa horrível pirâmide. Há
tonéis dispersos aqui e além, numa desordem comparável à de um
pátio de cervejaria. O fumo das caldeiras enegreceu o
filerete. Os marinheiros vão e vêm com as mãos e os rostos
brilhantes de gordura. O ruído é ensurdecedor. O próprio navio
tem o ar de um monstro arpoado recentemente.
Porém, no dia seguinte, olhem à volta, apurem o ouvido. Sem
as chalupas e as caldeiras, a traírem a sua especialidade, o
baleeiro tem o ar de um navio como os outros, um navio
comandado por um capitão meticuloso. O óleo bruto proveniente
do espermacete tem uma virtude muito particular: limpa tudo
aquilo em que toca. E isto explica por que razão a ponte nunca
está mais limpa do que depois da infernal operação que eu
acabei de descrever. Tanto mais que se fabrica um excelente
produto com as cinzas e os detritos dos cetáceos, utilizado na
limpeza das placas viscosas provenientes do corpo da baleia e
que ficam coladas ao casco. Com muitos trapos e baldes de
água, os marinheiros deixam o filerete tão limpo como antes.
Uns escovam o cordame coberto de fuligem, outros limpam todos
os objectos que serviram durante as últimas vinte e quatro
horas: selhas, caldeiras, refrigeradores, etc. Os tonéis estão
no porão. Os guindastes desapareceram. Por fim, os homens
tratam eles próprios de se lavar. Mudam de roupa interior, de
fatos, e quando voltam a aparecer na ponte impecável estão tão
janotas como noivos na manhã do casamento. Chegam mesmo a ter
ideias de grandeza. Passeando com ar alegre, em grupos de três
ou quatro, gracejam, perdem um pouco a cabeça. 

112

Um sugere que se ponham ali sofás e um tapete, outro que se
pendurem tapeçarias na enxárcia. E se alguém os convidasse,
com todo o gosto tomariam chá ao luar, no castelo da proa
feito salão!
Mas não se esqueçam de que lá em cima, nos postos de
observação, estão três vigias perscrutando incessantemente o
oceano. Se matarem mais baleias, chegará fatalmente para o
navio o instante de voltar a ficar todo engordurado, devido ao
toucinho e ao óleo daquelas e ao fumo das caldeiras. Muitas
vezes, os pobres marinheiros, após terem trabalhado
desesperadamente a esquartejar o animal capturado, a acender e
a cuidar das caldeiras, a vazar o óleo nos tonéis e a
descê-los ao porão, e enfim a limpar o navio, nem sequer têm
tempo de abotoar o blusão lavado que acabaram de vestir!
Porque um dos vigias gritou de súbito: O jacto! O jacto!
Então, sem hesitar, salta-se para as chalupas, trava-se
batalha com outra baleia.
Falo com conhecimento de causa desta existência febril e
entre todas fatigante, pois vivi-a a bordo do Pequod por todos
os mares do Mundo. 

113 

XII 

O DOBRÃO 

Como é já do vosso conhecimento, o capitão Acab, quando
estava na ponte, raramente se mantinha imóvel. Caminhava
incessantemente da bitácula até ao mastro grande e dava meia
volta com regularidade matemática cada vez que atingia um
destes pontos extremos do seu passeio. Porém esqueci-me de
especificar que, quando estava com um humor ainda pior do que
de costume, parava, quer na bitácula quer no mastro grande, e
ficava de olhar fixo no objecto que se encontrava na sua
frente. Assim, ora se inclinava com extrema atenção sobre a
agulha de marear ora se ia pôr a contemplar com expressão de
desespero violento, quase selvagem, a moeda de ouro que ele
próprio pregara no mastro grande.
Uma manhã, parando em frente do dobrão, pareceu mais
interessado do que nunca nas inscrições e desenhos gravados no
precioso metal, como se de repente descobrisse neles um
sentido que até então lhe escapara.
Deve dizer-se que aquele dobrão fora feito com um ouro
extraordinariamente puro, e que, pregado entre ferrugentas
cavilhas de ferro e pregos de cobre manchados de verdete,
conservava, mesmo assim, um incomparável brilho. Apesar de
tocado amorosamente todos os dias, por mãos nem sempre muito
limpas, exposto à acção corrosiva dos nevoeiros nocturnos,
aparecia todas as alvoradas ainda mais luminoso do que na
véspera. Ninguém, até então, pensara em roubá-lo. Na verdade,
os marinheiros consideravam-no uma espécie de talismã que
havia de permitir-lhes surpreender, perseguir e matar a baleia
branca. E, muitas vezes, durante os enfadonhos quartos de
noite, perguntavam de si para si, com uma vaga inquietação:
"Qual de entre nós virá a possuí-lo?"
O dobrão do Pequod era mais do que uma simples moeda de
ouro. Cunhado na América do Sul, era antes uma espécie de
medalha. À volta do bordo exterior podia ler-se a seguinte
inscrição: República do Equador, Quito; o fundo apresentava-se
decorado com palmas, montanhas, estrelas e sóis, cornucópias,
bandeiras flutuando ao vento, etc. Esta maravilhosa gravação
criara forma no seio da cordilheira dos Andes, numa região
muito diferente de todas as outras, visto ali não haver
Outono.
O capitão Acab parecia hipnotizado por aquela moeda. Talvez
visse nela a sua própria imagem. Talvez pensasse: "Esses
vulcões, além... mas, são mesmo a minha pessoa! O fogo deles é
o mesmo que me devora!"
Starbuck, o imediato do Pequod, que o observava pelo canto
do olho, murmurou:
"O velho, tal como o Baltasar da Bíblia, parece estar a
decifrar qualquer assustadora profecia. Mal ele volte para a
cabina, vou olhar bem para aquela moeda, pois nunca a examinei
de perto. Mas receio que me revele alguma descoberta
desagradável!..."
Stubb estava ao pé das caldeiras. Esperou que o capitão Acab
voltasse para a cabina e que Starbuck se afastasse. Então
aproximou-se por sua vez do mastro grande, dizendo:
"O velho tinha um ar sinistro e o Starbuck estava com cara
de caso! E tudo isto por causa de uma moeda de ouro que não
chegaria a criar bolor no meu bolso se me pertencesse! Um
dobrão... Vi tantos no decorrer das minhas viagens: dobrões
espanhóis, dobrões peruanos, dobrões chilenos, dobrões
bolivianos. O que é que este tem de especial? 

114 115

Foi cunhado em Quito, capital do Equador. Até aqui não lhe
vejo nada de muito original... Olha! Os signos do Zodíaco... É
curioso. O Carneiro, o Touro, os Gémeos, o Caranguejo, o
Escorpião, o Leão, o Sagitário, o Aquário, os Peixes, o
Capricórnio, a Virgem... Convinha era saber o que significa a
ordem por que estão dispostos os signos... Mas, atenção. Lá
está o Flask. É melhor esconder-me. O que estará ele a dizer?"
O segundo-tenente viera postar-se, por sua vez, em frente à
moeda e dizia entredentes:
"Ora bem, vejamos, isto não passa de uma moeda de ouro!
Porque vêm todos olhá-la tão atentamente? Eu cá só sei uma
coisa: vale dezasseis dólares, o que quer dizer que me
permitiria comprar oitocentos charutos a dois cêntimos. Porque
eu gosto de charutos. Não fumo cachimbo, como o Stubb..."
Depois, vendo um velho marinheiro a quem chamavam o homem da
ilha de Man, afastou-se precipitadamente e foi para junto da
escotilha, pensando:
"Este homem sempre é muito sinistro! Lembra o cocheiro de um
carro funerário. Dirige-se para o dobrão. Que diz ele? Quando
abre a boca parece que tem um moinho de café na garganta!"
Eis o que dizia o homem da ilha de Man:
- Se algum de nós avistar a baleia branca, será dentro de um
mês e um dia, quando o Sol entrar num destes signos. Há
quarenta anos, em Copenhaga, uma feiticeira ensinou-me os
segredos do Zodíaco. Ora, dentro de um mês e um dia, em que
signo estará o Sol? No signo do Leão! Ah!, misericórdia!
Pobre... Pobre Pequod! Tremo ao pensar em ti!
E o homem da ilha de Man afastou-se, arrastando os pés.
Stubb, sempre escondido, monologava assim:
"Palavra de honra, isto é uma procissão: a seguir ao Flask e
ao homem da ilha de Man, temos o Queequeg. E este até se
assemelha ao Zodíaco, com todas aquelas tatuagens!, que diz o
nosso canibal? Nada. Olha apenas estupidamente para o dobrão. 

116

Talvez julgue que é um botão dos calções que pertenceram a
algum rei... Mas, toca a esconder, tenho de me esconder
melhor! Lá está aquele diabo do Fedallah! Que olhar agudo! Irá
falar? Não. Inclina-se apenas ante o dobrão, ou melhor, ante o
Sol gravado na moeda. Mais um adorador do fogo, um selvagem,
um ser primitivo... E a procissão continua: Fedallah
afasta-se. E logo o pequeno Pip toma o seu lugar. Pobre Pip!
Não há nada mais triste do que a loucura! Mais lhe valia ter
morrido... Que estará ele a dizer?
O negrito louco fora postar-se em frente da moeda de oiro e
dizia atabalhoadamente:
- Este dobrão... o que é? O umbigo do navio! Todos desejam
tanto arrancá-lo dali! Mas experimentem só, e verão o que
acontece! E mesmo que fique lá preso àquele mastro, é muito
mau sinal... é sinal de desgraça, pela certa... Ah!, velho
Acab, não tardas a ouvir falar da tua baleia branca! 

- Ó!, do navio! Viu a baleia branca?
Tinham passado alguns dias. O capitão Acab interpelava uma
vez mais um navio, agora um inglês, que passava à nossa
retaguarda. Servindo-se do porta-voz, estava de pé na chalupa
suspensa dos turcos e com a perna de marfim poisada
negligentemente na borda do barco como que para a pôr bem em
evidência.
O capitão inglês, instalado também na sua chalupa, era um
homem que andaria pelos sessenta anos, de rosto bronzeado pelo
ar do mar.
Vigoroso e de fisionomia aberta, envergava um amplo blusão
azul de piloto, cuja manga direita flutuava vazia atrás dele e
lembrava a manga bordada, puramente decorativa, que faz parte
do uniforme dos hussardos.
- Viu a baleia branca? - repetiu Acab.
- E você, já viu isto? - replicou o inglês.
Com a mão esquerda arregaçara a manga direita e mostrava um
osso de cachalote terminado por uma espécie de martelo de
madeira. 

117 

- Desçam a minha chalupa! - gritou, febrilmente, o capitão
Acab.
Em menos de um minuto, a chalupa estava na água e, à força
de remos, foi colocar-se ao lado do navio inglês.
Mas surgiu então uma estranha dificuldade. Na sua agitação,
o capitão Acab esquecera que, desde que ficara sem a perna,
jamais entrara noutro navio além do seu e que se se movia sem
custo no Pequod era graças a um dispositivo especial. Tanto
mais que não é fácil para ninguém subir para uma chalupa em
pleno mar, pois as vagas imprimem a esta um movimento
incessante. Tão depressa a erguem até ao filerete como a
obrigam a mergulhar até às proximidades da quilha. Assim, o
capitão Acab, naquela ocorrência, achava-se tão incapaz como
qualquer homem inábil e acostumado a andar apenas em terra.
Contemplava com expressão furiosa o costado do navio, e mais o
encolerizava o facto de dois oficiais, debruçados no filerete,
darem mostras de esperar que o visitante utilizasse a escada
de corda guarnecida de dois elegantes corrimãos esculpidos,
junto da qual se encontravam.
Como se um inválido pudesse empreender com alguma
probabilidade de êxito uma tão inverosímil proeza! Felizmente
esta cena muda durou apenas um instante. Com efeito, o capitão
inglês, compreendendo o que se passava, gritou:
- É muito simples! Já vai ver!
E dirigindo-se aos marinheiros:
- Depressa, rapazes, o gancho de esquartejar!
Por um feliz acaso, o navio devia ter tido, dois ou três
dias antes, uma baleia presa ao costado, pois as roldanas
encontravam-se ainda batidas (1) no mastro, pendendo da sua
extremidade o potente gancho do toucinho, agora reluzente de
asseio. Segundos mais tarde o gancho baloiçava ao longo do
navio. Acab agarrou-o, enfiou a sua única perna na parte curva 

*1 Bater, na linguagem dos marinheiros, significa fixar. (N.
do T.) 

118

(como se se tratasse do braço de uma âncora ou de um ramo de
árvore), deu o sinal e, a fim de facilitar a manobra, puxou
ele próprio, com as duas mãos, um dos cabos que ligavam o
gancho às roldanas. A operação durou talvez um minuto. Depois,
o capitão do Pequod transpôs o filerete e foi cuidadosamente
posto em frente do cabrestante. Já o capitão inglês avançava,
estendendo o osso de cachalote que substituía o seu braço
direito. Por sua vez, Acab estendeu a perna de marfim e
exclamou com a sua habitual rudeza:
- Pois, é isso mesmo! Com muito prazer! Cruzemos os nossos
ossos! Cruzemos esse braço que será seu para sempre e esta
perna que nunca mais poderá correr! Onde é que viu a baleia
branca? Há quanto tempo?
- A baleia branca... - respondeu o inglês, estendendo o
braço artificial para leste. - Vi-a lá para as bandas do
equador, no decurso da última época.
- E foi ela que Lhe amputou esse braço? - perguntou Acab,
aproximando-se mais do seu interlocutor e apoiando-se-lhe no
ombro.
- Foi... pelo menos é responsável pelo caso. E você, essa
perna?
- Conte-me, antes, como se passaram as coisas consigo -
insistiu Acab.
- Bem - disse o inglês -, navegava pela primeira vez lá para
os lados do equador. Desconhecia ainda a existência da baleia
branca. Um dia, lançámos as chalupas ao mar a fim de
perseguirmos umas baleias - eram quatro ou cinco. - Tomei uma
delas à minha conta. O raio do animal parecia um cavalo de
circo. Rodopiava sem descanso à nossa volta como se
pretendesse virar o barco. E, de súbito, surge do fundo do
oceano uma outra baleia, essa enorme, toda coberta de rugas,
de olhos engelhados, com a cabeça branca, assim como a
bossa...
- Era ela! Era ela! - gritou Acab, ofegante.
- Tinha a barbatana de estibordo crivada de arpões...
- Arpões? Os meus, está visto! Mas continue, por favor,
continue.


119 

- Se quer que eu continue, não esteja sempre a
interromper-me - disse o inglês sorrindo. - Pois, aquela avó
de cabeça branca precipitou-se, coberta de espuma, sobre a
linha que já nos ligava à baleia que tínhamos arpoado.
- Co'a breca, queria cortá-la, para libertar a outra baleia!
É uma das suas habilidades. Já a conheço há muito.
O maneta continuou, imperturbável:
- Quais eram as suas intenções, não sei. A verdade é que, ao
pretender cortar a linha enrolou-se nela, e de tal maneira
que, quando puxámos esta, fomos precipitados sobre a sua bossa
branca, enquanto a outra baleia, liberta, fugia de cauda no
ar! Vendo que estávamos a braços com um animal fora de série -
um dos maiores, dos mais nobres que me foi dado contemplar -
decidi, embora ela me parecesse deveras enraivecida,
persegui-la e matá-la. A fim de ficar com maior liberdade de
movimentos, saltei para a chalupa do meu imediato Mounttop,
aqui presente e que tenho a honra de lhe apresentar, e,
apoderando-me do primeiro arpão que encontrei, arremessei-o
àquela trisavó. Senhor, que fiz eu? Imediatamente fiquei cego
como um morcego. Através da cortina de espuma que me toldava a
vista, apenas vislumbrava, e mesmo assim muito
indistintamente, uma cauda perpendicular como um campanário.
Recuar? Inútil pensar em tal. Bruscamente, enquanto tacteava à
minha volta na esperança de encontrar um segundo arpão, a
cauda desabou sobre nós, cortando em dois o nosso escaler. Mas
isto não foi tudo: a bossa branca recuou e acabou de esmagar
sob o seu peso as duas partes da embarcação. Os meus
companheiros procuraram desesperadamente afastar-se a nado.
Eu, sem saber o que fazia, agarrara-me com todas as forças à
haste do arpão que acabara de cravar no corpo do animal. E
este mergulhou. Que se passou então? O que ficou na minha
memória é confuso e rápido como um pesadelo. Uma das barbas de
um segundo arpão, vindo não sei donde, espetou-se-me no braço.
Fui arrastado a uma velocidade prodigiosa... Iria até ao fundo
do oceano? Depois, a barba acerada abriu caminho na minha
carne, ao longo do braço e saiu pelo pulso. Estava livre!
Achei-me à superfície, ofegante e nadando no meu sangue... O
resto não serei eu a contar-lho, mas sim o doutor Bunger,
cirurgião de bordo que, com prazer, lhe apresento.
O doutor Bunger conservava-se a dois passos do capitão Acab
e do capitão inglês. Este homem, ainda novo, tinha um rosto
espantosamente redondo, que exibia, apesar disso, uma
expressão muito grave. Vestia uma camisa de lã de um azul
desbotado e umas calças remendadas. Segurava na mão direita um
instrumento para entrançar cabos e na esquerda uma caixa de
pílulas. Mas, desde o início da conversa, estivera sempre a
olhar com ar crítico os membros de marfim dos dois oficiais.
Inclinou-se, com ar respeitoso, e começou nestes termos:
- O caso estava feio. A meu conselho, o capitão Boomer
mandou o nosso velho Summy virar de bordo.
- Devo dizer-lhe - interrompeu o maneta, dirigindo-se a Acab
-, que o meu barco se chama Sammuel-Enderby.
E, voltando-se para o médico:
- Continue, Bunger.
- Aconselhei pois o capitão Boomer a seguir rumo ao norte,
para nos afastarmos do calor insuportável do equador. Mas não
se ganhou muito com isso. No entanto, eu fazia tudo o que me
era possível. Passava as noites inteiras à cabeceira do
capitão, vigiava severamente o seu regime...
O capitão Boomer voltou a interrompê-lo.
- Severamente! - exclamou. - A verdade é que todas as noites
ele ficava a beber comigo copos e mais copos, a ponto de já
não ver bem quando chegava a altura de me fazer o penso. Ao
mandar-me para a cama, pelas três da manhã, estávamos os dois
meio bêbedos. Ah!, gabe-se, gabe-se! Com que então vigiava
severamente o meu regime! Vamos, Bunger, faça um sorrisinho!
Não fique com esse ar severo. Todos sabemos que você é um tipo
patusco. Mas não importa. Gosto muito de si. A tal ponto que
antes queria ser morto por si do que salvo por outro médico
qualquer! 

120 121 

Sem perder a calma, o doutor Bunger lançou um olhar
entendido a Acab e disse-lhe:
- Como vê, o capitão Boomer tem facetas muito jocosas. No
entanto, devo dizer-lhe que sou de uma sobriedade exemplar.
Nunca bebo...
- Claro! - exclamou o capitão Boomer. - Nunca bebe! O que
ele se esqueceu de dizer é que nunca bebe... água! Vejamos,
Bunger, seja franco: confesse que sofre de hidrofobia. Mas
continue a sua história.
- Está bem, continuo, acho melhor - disse o doutor Bunger,
com um arzinho de quem amola o caso. - O ferimento, apesar dos
meus esforços, piorava constantemente. Nunca vi chaga tão
feia. E que comprimento! Media dois pés e umas polegadas. Eu
sondei-a... mas de que serviu tudo isso? Estava prestes a
gangrenar... Tomei, pois, uma grande decisão: cortei. E aqui
temos o capitão Boomer com um braço a menos... Mas, quanto a
esse osso de cachalote - acrescentou ele apontando o estranho
braço artificial -, não fui eu que tive a ideia, foi o próprio
capitão. Encomendou-o ao nosso carpinteiro. Porque quis que
lhe acrescentassem aquele martelo? Talvez para rachar o crânio
a alguém, como quis um dia rachar o meu.
Acab, que começava a impacientar-se, voltou à carga.
- E a baleia branca, que foi feito dela, depois dessa
aventura?
- É verdade... a baleia branca... - murmurou o capitão
Boomer. - Bem, durante algum tempo não voltámos a vê-la.
Aliás, como lhe disse, desconhecia o animal que defrontei. Foi
só quando regressámos aqui às proximidades do equador que
soube a verdade: tinha roçado a Moby Dick, como algumas
pessoas lhe chamam.
- E depois?
- Cruzámo-nos com ela mais duas vezes.
- Não conseguiram arpoá-la, aposto?
- Nem mesmo tentei: basta-me ter perdido um braço. Que seria
de mim se me visse privado do que me resta? Não estou
interessado em fornecer à Moby Dick mais uma refeição tirada
da minha carne!
- Compreendo... compreendo - respondeu Acab -, todavia é-me
impossível participar da sua prudência. A baleia branca
atrai-me justamente porque é perigosa. Tem sobre mim o poder
de um íman... E caçá-la-ei aconteça o que acontecer! Quanto
tempo passou desde que a viram pela última vez? Em que
direcção ia?
Havia alguns instantes que o doutor Bunger, quase dobrado em
dois, andava à volta de Acab, farejando-o, um pouco à maneira
dos cães. De súbito, tirando uma lanceta do bolso, exclamou:
- Deus do Céu! Tragam-me um termómetro! Este homem está a
arder em febre! Do que ele está a precisar é de uma boa
sangria!
E preparava-se já para enterrar a lanceta no braço do
veLho... Com um gesto violento, Acab repeliu-o até ao
filerete, bradando:
- Que é lá isso? A mim, marinheiros! Preparem a minha
chalupa!
Depois, voltando-se para o capitão inglês, repetiu:
- Em que direcção ia ela?
- Bem, parece-me... parece-me que se dirigia para leste -
respondeu Boomer, com expressão de profunda surpresa.
E, inclinando-se para Fedallah, murmurou:
- O vosso capitão não tem o juízo todo?
Como única resposta, Fedallah levou um dedo aos lábios.
Depois, transpôs o filerete.
Após ter-se instalado de novo no gancho, Acab ordenou aos
marinheiros do Sammuel-Enderby:
- Ponham-me lá em baixo!
Passado um momento, encontrava-se na parte de trás da
chalupa. Quedou-se impassível enquanto os seus homens
começavam a remar. De costas voltadas para o navio inglês, o
rosto de uma dureza de pedra, manteve-se imóvel como uma
estátua até o barco chegar junto do Pequod. 

122 123  

XIII 

A PERNA DE ACAB 

Como acabei de dizer, o capitão Acab deixara o
Sammuel-Enderby precipitadamente. Ao tomar lugar na chalupa,
não reparou que a sua perna de marfim chocara com um dos
bancos. Mas, quando voltou à ponte e encaixou o osso de
cachalote num dos buracos abertos no castelo da popa, virou-se
com tal violência, a fim de transmitir uma ordem ao timoneiro,
que o marfim, já fendido, torceu-se. Na verdade, o estranho
membro podia ainda servir, visto não estar quebrado. Porém,
passou a inspirar-lhe menos confiança do que até então.
Um facto bastante significativo merece ser aqui citado:
apesar da sua loucura, o capitão Acab submetia frequentemente
a cuidadosos exames aquele esquisito suporte, que lhe permitia
manter em parte o equilíbrio. Com efeito, uma noite, pouco
depois da nossa partida de Nantucket, tinham-no encontrado sem
sentidos, estendido no chão da cabina. Por qualquer razão
inexplicável, a perna de marfim, ao deslocar-se, produzira, na
virilha, um grave ferimento que exigiu muitos e difíceis
cuidados e levou imenso tempo a cicatrizar por completo.
Que invisível poder quisera impedir o capitão do Pequod de
arrastar a sua tripulação para uma perigosa aventura? O certo
é que este caso esteve sempre envolvido num mistério que nunca
ninguém conseguiu decifrar. No entanto, este incidente
explicava, em parte, por que motivo Acab se mantivera
obstinadamente na sua cabina antes e depois da partida,
furtando-se aos nossos olhares como o grande Lama do Tibete ao
dos seus fiéis.
Mas, voltemos à vaca-fria. Ao aperceber-se de que a perna
estava rachada, Acab tomou uma decisão simples e prática:
mandou chamar o carpinteiro de bordo.
Quando este se apresentou, ordenou-lhe em tom que não
admitia réplica:
- Preciso de outra perna. Tens de fazê-la sem demora.
E dirigindo-se aos oficiais:
- Vocês ponham à sua disposição tudo aquilo de que ele
precisar. Façam uma escolha cuidadosa entre os ossos de
cachalote que juntámos desde o início da viagem. Quero uma
coisa não apenas resistente, mas de um grão finíssimo.
Depois, voltando-se de novo para o carpinteiro:
- Essa perna, assim como todos os acessórios que servem para
a prender, quero-a esta noite sem falta.
Por fim, mandou chamar o ferreiro e disse-Lhe:
- Tira a forja do porão e ajuda o carpinteiro na medida do
possível.
O carpinteiro do Pequod, apesar da humildade das suas
funções, era um personagem de certa importância. Como todos os
carpinteiros da marinha - e muito especialmente aqueles que
trabalham nos baleeiros -, era a um tempo indolente e activo e
muito hábil numa série de ofícios relacionados de perto ou de
longe com o seu. Conhecia a fundo, por exemplo, os mil
segredos de mecânica empírica aos quais é preciso recorrer a
cada passo para assegurar o bom andamento de um navio que,
durante três ou quatro anos, navega em oceanos longínquos e
selvagens. Desempenhava às mil maravilhas, não apenas as
funções normais do seu cargo, reparação das embarcações, das
antenas, dos remos, das vigias, das tábuas do soalho, da
mastreação, etc..., mas, além disso, dava provas, em muitos
outros domínios, de uma habilidade incomparável e, por vezes, 

124 125

cheia de fantasia. Interpretava todos estes numerosos e
variados papéis atrás do seu banco de carpinteiro, uma
comprida e pesada mesa toscamente esquadriada, munida de
vários tornos para ferro e madeira. Este banco encontrava-se
sempre a dois passos das caldeiras, excepto quando havia uma
baleia amarrada ao longo do navio.
Uma estaca era demasiado grossa para entrar facilmente no
seu orifício? O carpinteiro introduzia-o num dos tornos e logo
lhe dava o calibre pretendido. Um pássaro de flamante plumagem
despenhava-se, esgotado, na ponte? Com pequeninos ossos de
baleia ou de cachalote confeccionava prontamente uma gaiola em
forma de pagode. Um remador torcia um pulso? O carpinteiro
preparava-lhe e aplicava-lhe uma loção calmante. Stubb queria
estrelas vermelhas nos remos da sua embarcação? O carpinteiro
punha os remos em cima do seu banco e decorava-os com uma
constelação tão rutilante como simétrica. Um marinheiro
manifestava o desejo de usar brincos de osso de tubarão? O
carpinteiro furava-lhe as orelhas. Outro marinheiro tinha dor
de dentes? O carpinteiro empunhava a torquês e fazia-lhe sinal
para se sentar no banco. Mas, em geral, o paciente soltava
alguns gritos aflitivos antes do fim da operação...
Enfim, este mirabolante carpinteiro era uma mina de
surpresas. No entanto, indiferente a tudo, nada respeitava. A
seus olhos, os dentes do próximo não eram mais que pedaços de
marfim, as cabeças, simples bolas de pau. Para ele, um homem
não tinha mais importância que um cabrestante. Pensam,
decerto, após os exemplos que dei da sua habilidade: Deve ser
um sujeito invulgarmente inteligente... Mas não. Não é bem
isso. O que tornava sobretudo notável o carpinteiro do Pequod
era a sua inabalável placidez. Vira tantas coisas no decorrer
daquela existência errante!
Nessa noite, durante o primeiro quarto, mal acabou de comer
foi postar-se atrás do seu banco, à luz de duas lanternas.
Afincadamente, pôs-se a limar o pedaço de marfim que devia
substituir a perna rachada do capitão Acab. À sua volta, sobre
o banco, viam-se tiras de couro, parafusos, utensílios de
todas as espécies. À proa do navio brilhava o clarão vermelho
da forja.
Enquanto trabalhava, o carpinteiro espirrava constantemente,
e ia murmurando:
- Maldita lima e maldito osso! A lima é mole, o osso é duro.
Com uma ferramenta destas, o que se pode fazer de um velho
maxilar ou de uma velha tíbia? - isto admitindo que os
cachalotes tenham tíbias... - Experimentemos outra lima...
sim, esta parece melhor... Atchim! Ah!, que raio de poeira!...
Atchim! Atchim! É que nem me deixa falar... Um tipo serra
madeira ou mesmo um osso fresco e não há poeira. Ora bem, esta
virola, esta fivela, vou precisar delas daqui a pouco...
Felizmente o capitão não me pediu para lhe fazer uma rótula!
Mas uma gâmbia, uma reles gâmbia, é tão fácil como uma vara de
lúpulo. O que é preciso é paciência, muita paciência. Ah!, se
eu tivesse tempo, que coisa bonita lhe faria! Mas o diabo do
homem anda sempre cheio de pressa... Aliás, isto está quase
pronto... Só falta cortar para acertar o comprimento. Oxalá
não esteja curta!... O melhor será ir procurar o velho... Mas
olha, ali está ele! Que sorte!...
Com efeito, o capitão Acab avançava, dirigindo-se para o
banco.
- Então, Smut, tu que substitues os membros perdidos, diz
lá, como vai isso?
- Olhe, capitão, chega mesmo a propósito - respondeu o
carpinteiro. - Se me dá licença vou tirar-lhe a medida.
- Tirar a medida da minha perna? Bom. Muito bem. Aliás não é
a primeira vez, pois não? Vá, faz lá o teu trabalho. Eu
espero. Tens aqui uns ricos tornos. Este, por exemplo. Aperta
bem?... Safa, pode até dizer-se que morde!
- Cuidado, cuidado, capitão! Quer esmagar essa mão?
- Não tenhas medo, Smut. Sabes, acho que nesta vida tudo me
escorrega por entre os dedos; gosto de sentir qualquer coisa 

126 127

de sólido, qualquer coisa que me resista. O que está ali a
fazer o nosso Prometeu?... Quer dizer, o ferreiro? Sim, o que
está ele a fazer?
- Deve estar a forjar a rosca da entrada, capitão.
- Óptimo. Em suma, é teu sócio. É ele que fornece a força, o
músculo. Ah! Que braseiro assustador!
- Bem vê, capitão, para um trabalho tão delicado tem de se
levar o metal ao rubro...
- Claro, claro. Que coisa profunda, Smut! Prometeu também
era ferreiro. Segundo dizem, ele teria feito o primeiro homem
e tê-lo-ia animado por meio do fogo. Assim, segue bem o meu
raciocínio: o que foi feito pelo fogo, logicamente, pertence
ao fogo. E, como há fortes probabilidades de que exista o
Inferno... Olha, a fuligem! Foi, sem dúvida, com fuligem
semelhante a esta que paira no ar que Prometeu fez o primeiro
negro... Escuta, Smut, quando o ferreiro acabar de forjar a
rosca, diz-Lhe que faça um par de omoplatas de aço. Há a bordo
um bufarinheiro que verga ao peso do fardo...
- Desculpe, capitão, mas não percebi muito bem.
- Escuta, escuta! Enquanto o Prometeu está em pleno
trabalho, vou encomendar-lhe um homem completo. Quero que
tenha cinquenta pés de altura acima dos escarpins, o peito da
largura do Tamisa, pernas com raízes para que se conserve
sempre no mesmo sítio, braços que terminem em pulsos com três
pés de circunferência, fronte de bronze, um pouco de bom
cérebro, um coração..., não, nada de coração! Quanto aos
olhos..., também não são precisos. Podem ser substituídos por
uma lanterna aberta na parede superior do crânio. Assim,
ficará lá dentro e não verá a fealdade do mundo. E agora,
corre! Vai tratar da minha encomenda!
O carpinteiro fitava Acab com um espanto crescente. E dizia
consigo:
"Palavra de honra, o homem perdeu a cabeça! Onde quer ele
chegar com esta conversa?"
Porém Acab, falando de si para si, continuava:
"Uma luz... sim, também faz falta uma luz..."
- Uma luz, capitão? - repetiu o carpinteiro. - Como vê...
Atchim!, tenho duas aqui em cima do meu banco. Tome lá esta.
Só preciso de uma.
- Para trás! Porque me apontas isso à cara? Não sabes que
uma luz assim apontada à cara é mais desagradável do que uma
pistola?
- Quem o ouvisse, capitão, nem acreditaria que está a
falar... Atchim!, com o seu carpinteiro!
- Com o meu carpinteiro? Sim, é verdade. Mas tu não és um
carpinteiro vulgar. No teu trabalho há requinte, quase se pode
dizer que há arte. Contudo, talvez preferisses modelar o
barro?
- Não, capitão. Afinal o barro o que é? Lama. Deixemos o
barro aos que trabalham com a terra... Atchim!
- Porque estás sempre a espirrar?
- É este seu osso, capitão. Faz muito pó.
- O que prova, se entendes as coisas por meias palavras, que
nunca devemos, quando mortos, deixarmo-nos enterrar debaixo do
nariz dos que ainda estão vivos.
- Debaixo do nariz? Ah! sim... Sim, capitão, começo a
compreender.
- Ouve lá, carpinteiro. Tu consideras-te um bom operário,
não é assim? Pois bem, se queres que todos o reconheçam, faz
com que essa perna artificial me dê a impressão de ser uma
verdadeira perna, plena de músculos e sangue, como a que
perdi!
- Sim, sim, capitão, estou a perceber. De resto tenho ouvido
contar histórias bem curiosas a esse respeito; por exemplo,
que um homem desmastreado, com sua licença, tem por vezes a
impressão de sentir ainda o seu velho mastro e até de sentir
comichão nele. Posso perguntar-lhe, capitão, se isso é mesmo
assim?
- É, carpinteiro, é mesmo assim. Mas já tagarelámos muito.
Quanto tempo te falta para acabares esse trabalho?
- Mais ou menos uma hora, capitão. 

128 129 

- Muito bem. Leva-me então essa tua obra-prima logo que
esteja concluída.
E, dando meia volta, o capitão encaminhou-se para o castelo
da popa. O carpinteiro seguiu-o com os olhos, pensando:
"O Stubb tem razão quando diz com um ar pensativo que o
capitão é esquisito. E é mesmo... Muito esquisito..."


130 

XIV 

QUEEQUEG NO SEU ESQUIFE 

No dia seguinte, estávamos como de costume a dar à bomba,
quando, de súbito, apareceu uma considerável porção de óleo
misturado na água. A tripulação ficou preocupada e Starbuck
desceu à cabina para pôr o capitão ao corrente dessa
desagradável descoberta. Para que se compreenda o que foi
dito, devo explicar que quando um baleeiro transporta uma
importante quantidade de óleo, é introduzida no porão uma
conduta que rega os tonéis com água do mar. Esta operação tem
lugar duas vezes por semana. Permite não apenas manter os
tonéis em estado de humidade conveniente, mas também
verificar, por meio da água sugada todos os dias pelas bombas,
se se produziu alguma fuga na preciosa carga.
Naquele momento, aproximávamo-nos da Formosa e das ilhas
Bachi, entre as quais fica, como todos sabem, um dos
corredores que permitem passar do mar da China para o
Pacífico.
Quando Starbuck abriu a porta da cabina, o capitão Acab
estava debruçado sobre duas cartas, uma representando os
arquipélagos do Extremo Oriente, a outra as costas leste das
três principais ilhas japonesas: Nippon, Yeso e Sikok.
Apoiava a nova perna de marfim branco como a neve contra o
pé atarrachado da mesa e, de sobrolho carregado, refazia 

131

em espírito todas as viagens que empreendera desde a
juventude.
- Quem está aí? - resmungou o extravagante velho. - Volte
para a ponte! Ponha-se a andar!
- Sou eu, o seu imediato, capitão - disse Starbuck -, há uma
fuga no porão. Temos de preparar as talhas e abrir a
escotilha.
- Preparar as talhas e abrir a escotilha! Quer que vamos
perder talvez uma semana, agora que estamos a aproximar-nos do
Japão! E tudo isto por causa duns velhos tonéis!
- Se não fizermos nada, capitão, arriscamo-nos a perder em
alguns dias toda a carga de óleo. Foi para isso que
percorremos vinte mil milhas?
- Não, não foi para isso!
- Então para que foi, capitão?
- Para outra coisa... Deixe lá o seu óleo fugir! A bordo do
Pequod nem só os tonéis têm fugas! Páro eu, por acaso, para...
para me consertar? Não, Starbuck, não! Não mando preparar as
talhas nem abrir a escotilha!
- Mas, capitão, que dirão os proprietários quando
souberem...
- Quero lá saber dos proprietários! Interessam-me tanto como
a primeira camisa que vesti! Porque está você sempre a
maçar-me com os miseráveis dos proprietários? Até parece que
essa gente é como que a minha consciência! No mar, o único
proprietário do navio é o seu capitão! Volte para a ponte,
Starbuck!
Com estranha firmeza, embora corando, o imediato do Pequod
avançou alguns passos.
- Capitão - disse -, não gosto de ser tratado dessa maneira.
E, olhe, apetece-me esquecer que é mais velho do que eu... e
muito infeliz...
- Que é lá isso, patife, atreves-te... vamos, para a ponte,
e sem demora!
- Não, capitão, ainda não. Peço-lhe que seja indulgente e
que me escute. Pois não poderíamos entender-nos?
Furioso, Acab foi buscar uma espingarda carregada ao
armeiro, e apontando-a a Starbuck exclamou:
- Há só um Deus que é o Senhor da Terra e há só um capitão
que é o senhor do Pequod! Fora daqui! Para a ponte!
Durante alguns momentos, com os olhos brilhantes e as faces
em fogo, Starbuck ficou com a expressão que faria se o velho
tivesse já premido o gatilho da arma. Depois, dominando-se,
deu meia volta e, antes de deixar a cabina, articulou:
- O senhor ultrajou-me, capitão, mas não me insultou. Não
serei idiota ao ponto de lhe dizer que tenciono vingar-me,
pois riria na minha cara. Não, contento-me em dizer-lhe isto:
desconfie de si próprio, velho, desconfie de si.
Quando Starbuck fechou a porta, o capitão Acab, servindo-se
da arma como de uma bengala, pôs-se a percorrer a cabina a
passos largos, murmurando:
- Está a tornar-se atrevido. Mas, mesmo assim, obedece.
Prudência e coragem... Que disse ele? Velho, desconfie de
si...
E repetiu ainda várias vezes: "Velho, desconfie de si..."
Por fim, com expressão mais calma, voltou a colocar a
espingarda no armeiro e subiu para a ponte. Ali, aproximou-se
do imediato e murmurou-lhe ao ouvido:
- És um bom rapaz, Starbuck...
E, em voz de comando, para a tripulação:
- Ferrem os joanetes e as gáveas, cacem o traquete, depois
icem as talhas e abram o porão principal!
Por que motivo parecia o capitão Acab ceder assim ao desejo
expresso na cabina por Starbuck? Sem dúvida porque não se
fechara ainda a qualquer iniciativa razoável, mas sobretudo
porque sabia que para bom andamento do navio não tinha o
direito de entrar em conflito com o imediato.
Alguns minutos mais tarde, as suas ordens tinham sido
executadas, isto é, tinham içado as talhas e o porão fora
aberto.
Passado um momento, aperceberam-se de que os tonéis, 

132 133

que ficavam por cima estavam intactos. Então, para chegarem
aos que se encontravam no fundo do porão, trouxeram à luz do
dia os primeiros, como se fossem gigantescas toupeiras, depois
os segundos e os terceiros. De tal forma que, num lapso de
tempo bastante curto, as pontes, atulhadas, ficaram de difícil
acesso e o porão, quase vazio, começou a ressoar sob os nossos
passos.
O casco, aliviado da carga, baloiçava e arfava sobre as
ondas e o navio, muito carregado em cima, lembrava um
estudante que não jantou e cuja cabeça está demasiado cheia de
ciência. Que se teria passado se, durante esta operação, se
tivesse abatido sobre nós um tufão?
Apesar de tudo, foi nesse dia que Queequeg, o meu caro
canibal e amigo íntimo, adoeceu com uma febre que quase lhe
custou a vida.
Acreditareis certamente, espero, se vos disser que na
profissão de baleeiro não há sinecuras. Quanto mais uma pessoa
se eleva na hierarquia de bordo mais difícil é a sua tarefa.
Na qualidade de arpoador, Queequeg tinha não só que enfrentar
os cetáceos vivos, mas também de participar no
esquartejamento, meter o toucinho nas caldeiras e ajudar à
arrumação dos tonéis nas trevas do porão.
Pobre Queequeg! Mal o porão grande se abria poderíeis,
debruçando-vos na borda da escotilha, vê-lo a rastejar, nu da
cintura para cima, na sombria humidade das profundezas.
Dir-se-ia um lagarto verde, deslizando pelo lodo, no fundo de
um poço. E, como era de esperar, contraiu, naquele poço
gelado, um resfriamento tão grave que teve de recolher à sua
maca e, uns dias mais tarde, estava às portas da morte. Ficara
reduzido, por assim dizer, aos ossos e às tatuagens. À medida
que a carne do rosto se ia consumindo, os olhos aumentavam de
tamanho e adquiriam uma comovedora doçura. Sempre que ficava
junto dele e o olhava, sentia-me penetrado de um misto de
respeito e temor. É que descobrira, nas feições daquele
selvagem agonizante, pensamentos misteriosos e elevados,
pensamentos tão nobres como indecifráveis. O mar, ao baloiçar
a sua maca, parecia embalá-lo, a fim de lhe permitir entrar
mais facilmente no seu último sono. Dava-me a impressão de que
ele o transportava cada vez mais para o alto, sem dúvida para
esse paraíso cujo acesso não podia ser-lhe recusado...
Toda a tripulação o julgava perdido. Quanto ao próprio
Queequeg, avaliava tão bem o seu estado que pensou achar-se no
direito de pedir um surpreendente favor. Um dia, durante o
pequeno quarto da manhã, isto é, ao alvorecer, fez sinal a um
dos companheiros para se aproximar da maca e tomando-lhe a mão
disse mais ou menos isto:
- Quando estive em Nantucket vi por acaso umas canoas
pequenas feitas da mesma madeira escura que as pirogas de
guerra da ilha onde nasci. Quando procurei informar-me,
disseram-me que os baleeiros ao morrerem, em Nantucket, eram
enterrados dentro dessas canoas. Esta revelação causou-me
grande prazer, pois me pareceu haver nela algo de comparável
aos costumes do meu país. Com efeito, entre nós, quando um
guerreiro morre começamos por embalsamá-lo e depois deitamo-lo
na sua piroga. Após o que deixamos que as vagas o levem para
os arquipélagos de estrelas. Porque os homens da minha raça
acreditam que as estrelas são ilhas, e acreditam também que,
para lá do horizonte, o oceano se funde no azul dos céus para
formar os rochedos nevados da Via Láctea. Mas eu tremo à ideia
de ser baloiçado na minha maca e atirado aos tubarões! Não,
não quero ser abandonado para servir de pasto a esses
devoradores de mortos! Quero uma canoa como aquelas que vi em
Nantucket. Acho-as muito simpáticas, pois lembram vagamente
baleeiros, mas baleeiros sem quilha a qual deve ser difícil de
manobrar no oceano da eternidade...
Era mais ou menos isto o que dizia o meu querido canibal a
um dos nossos camaradas.
Quando o capitão tomou conhecimento do assunto, ordenou ao
carpinteiro que fizesse todo o possível por satisfazer o
desejo expresso por Queequeg. Encomendou-lhe a fabricação 

134 135

do esquife com tábuas de cor escura provenientes de várias
árvores cortadas, no decorrer de uma viagem anterior, nas
florestas das ilhas Lackaday. O velho Smut muniu-se da sua
régua e, sem demora, foi tirar as medidas ao moribundo.
- Pobre diabo! Pobre diabo! - murmurava ele, marcando traços
a giz cada vez que deslocava a régua. - Agora só lhe resta
morrer.
De volta ao seu banco, reuniu as ferramentas e as tábuas que
o capitão Acab o aconselhara a utilizar. Depois, com a
prontidão do costume, meteu mãos à obra.
Quando pregou o último prego e acabou de ajustar a tampa,
pôs o esquife ao ombro e dirigiu-se para o castelo da proa,
perguntando:
- Vão utilizá-lo já?
Como é natural, alguns responderam-lhe com gritos de
indignação. Outros contentaram-se em desatar a rir à sua
passagem. Queequeg, alertado por este barulho, conseguiu
gritar, apesar da sua fraqueza:
- Quero já aqui o meu esquife!
A consternação foi geral. Mas quem teria a coragem de não
satisfazer o seu pedido? E, além disso, não é costume
inclinarmo-nos perante as mais ínfimas vontades dos
moribundos?
Debruçando-se na maca, Queequeg olhou atentamente para o
esquife. Quando, a seu pedido, lhe levaram o arpão,
desmontou-o e mandou que colocassem o ferro e a haste deste,
assim como um dos remos da sua baleeira, entre as tábuas
escuras. Ainda a seu pedido, alinharam ao longo das tábuas uma
determinada quantidade de biscoitos. Mas não se ficou por
aqui. Quis também que pusessem junto dos biscoitos uma garrafa
de água doce e, além disso, no sítio da cabeça, um pedaço de
pano enrolado em forma de travesseiro e, aos pés, um saco de
terra, ou melhor, de lodo misturado com bocados de madeira
podre proveniente do porão.
Concluída a operação, ordenou num tom que não admitia
réplica:
- Deitem-me lá dentro!
Ficou alguns minutos imóvel dentro do esquife. Depois pediu
a um de nós para lhe dar o seu pequeno deus, o seu Yojo. Tendo
o Yojo sobre o peito, cruzou os braços e disse:
- Fechem a escotilha!
Esqueci-me de dizer que a tampa comportava à altura da
cabeça uma espécie de vigia articulada por meio de dobradiças
de couro. A tampa foi então fechada, tendo-se deixado aberta a
vigia e pudemos ver Queequeg calmo e perfeitamente
descontraído. Passado um longo momento, murmurou:
- É isto mesmo. Está-se muito bem neste esquife... E agora
voltem a pôr-me na minha maca.
Assim se fez. E, no dia seguinte, milagre! Tendo tomado
todas as disposições para morrer e verificado que o esquife se
adaptava bem à sua pessoa, Queequeg, sem dizer água vai,
voltou bruscamente à vida! Como o felicitávamos, disse:
- Não é uma ressurreição. Bastou-me, para voltar a ser mim
próprio, lembrar-me que antes de partir de Nantucket não fiz
tudo o que me tinha proposto fazer. Nestas condições como
podia resignar-me a morrer?
- Viver é então uma questão de vontade? - perguntou um de
nós.
- Claro! - exclamou o convalescente. - Quando um homem está
resolvido a viver, não é uma simples doença que pode matá-lo.
Quanto a mim, sei que para me matar é preciso, pelo menos, um
cachalote ou um tufão!
Claro que tudo isto é apenas, de algum modo, a tradução dos
conceitos expostos por Queequeg, pois este, embora tivesse
feito progressos desde a partida, continuava a expressar-se
numa algaraviada cuja transcrição seria quase impossível.
Já repararam que os selvagens, contrariamente aos
civilizados, quase nunca têm necessidade de convalescença?
Queequeg recuperou quase logo o apetite. Após ter preguiçado
dois ou três dias sobre o cabrestante, levantou-se de repente,
espreguiçou-se e bocejou a ponto de deslocar os maxilares. 

136 137

Depois, pegando no arpão, saltou para a baleeira que se
balançava nos turcos e gritou:
- Acabou! Estou pronto para a luta!
"E o esquife?" - perguntareis. - Pois bem, sempre
transbordante de fantasia, o meu querido canibal serviu-se
dele como arca para os seus objectos pessoais e para o
vestuário. Dedicou as suas horas de lazer a decorar-lhe a
tampa com a ponta da faca, ornando-a de desenhos que
reproduziam as suas tatuagens. Ora, estas tatuagens haviam
sido feitas, ao que parece, por um feiticeiro da sua terra.
Que representavam elas? Sem dúvida os símbolos misteriosos do
universo tal como um espírito primitivo pode imaginá-los.
Um dia, o capitão Acab parou junto de Queequeg e, após ter
comparado as tatuagens deste com as reproduzidas no esquife,
virou bruscamente as costas e afastou-se, resmungando:
- Sempre este maldito fascínio pelos falsos deuses no
cérebro dos simples! 

138 

XV 

O PACÍFICO 

Quando passámos além das ilhas Bachi e se desenrolaram
ante os meus olhos milhares de léguas de vagas azuis, deveria,
se não estivesse preocupado com tanta coisa, ter saudado o
oceano Pacífico com alegres exclamações. Pois não era o sonho
de toda a minha juventude que via enfim realizado?
Há uma espécie de suave mistério neste mar, cuj as vagas
leves e temíveis parecem obedecer à acção de uma alma oculta
sob a sua superfície. Mas esta alma é múltipla e multiforme: é
a de milhões de sombras humanas, de milhões de sonhos
desfeitos que, como alguém imerso em sono agitado, se revolvem
infindavelmente na sua sepultura líquida. Qualquer viajante
que seja uma alma aberta à poesia terá de preferir o Pacífico,
encruzilhada de todas as águas do Mundo. O mar das Índias e o
Atlântico nada mais são do que seus membros. As suas vagas
banham não apenas as cidades da Califórnia, mas também as
explêndidas terras da Ásia, mais velhas que os antepassados de
Abraão; não só as constelações de ilhas de coral da Oceania,
mas também os inumeráveis arquipélagos do impenetrável Japão.
Assim, o Pacífico abraça a terra inteira. Quando embalados
pelo seu eterno marulhar, não podereis deixar de dizer num
murmúrio: "é um deus! É Pã, senhor do Universo! Salve, grande
Pã!"


139 

O capitão Acab, esse, tinha em mente preocupações que de
modo nenhum diziam respeito ao grande deus Pã. Imóvel como uma
estátua de bronze, no seu lugar habitual, junto da enxárcia do
mastro de mezena, respirava com uma narina o perfume adocicado
das ilhas Bachi e com a outra o odor salgado do Pacífico,
onde, sem dúvida, nesse instante, errava a sua inimiga mortal,
a baleia branca. Desde que deixáramos o mar da China, a sua
vontade endurecera; os lábios cerravam-se como as alavancas de
um torno, as veias da fronte inchavam, prestes a estalar e,
mesmo durante o sono, ouvíamo-lo por vezes bradar numa voz que
trespassava o casco do navio:
- Todos à popa! A baleia branca lança o seu jacto sangrento!
O ferreiro de bordo chamava-se Perth. Era um homem idoso,
curvado, de rosto enegrecido e mãos cobertas de ampolas.
Quando terminou a nova perna de Acab, em vez de levar a forja
portátil para o porão, guardou-a na ponte, encostada ao mastro
do traquete, fixada neste por sólidos parafusos. E então era
constantemente solicitado, a fim de executar pequenos
trabalhos para os oficiais, arpoadores e marinheiros. Reparava
as armas, os remos, os aros das baleeiras, muitas vezes
formavam círculo à sua volta. Um com uma enxada, outro com um
arpão, um terceiro com um ferro de lança. Mas tinham de se
revestir de paciência, pois, embora ele nunca protestasse,
trabalhava com desesperadora lentidão. Silencioso e solene,
cada dia com os cansados ombros mais curvados, erguia e
deixava cair o martelo à mesma invariável cadência, sem dúvida
o das pesadas pancadas do seu coração.
O seu andar - uma espécie de perpétua guinada - não deixara,
desde o começo da viagem, de excitar a curiosidade dos
marinheiros. No entanto, fora preciso massacrá-lo com
perguntas para que ele consentisse em contar a sua vergonhosa
e lamentável história.
Durante o Inverno, numa noite glacial, parara entre duas
aldeias, em pleno campo, e não encontrara refúgio senão num
celeiro aberto de todos os lados. Na sequência desta aventura
tiveram de lhe amputar não apenas os dedos, mas também as
extremidades dos pés. Depois, pouco a pouco, foi contando toda
a sua vida, até ao drama que parecia ser uma conclusão.
Aos sessenta anos conhecera dois companheiros que jamais o
abandonariam: a tristeza e a ruína. Artesão apreciado e sempre
sobrecarregado de trabalho, possuía uma casa e um jardim, uma
mulher devotada e três filhos alegres e saudáveis. Todos os
domingos ia à igreja, uma bonita igreja escondida entre
árvores. Mas uma noite, um ladrão, protegido pelas trevas,
introduzira-se no seu lar e despojara-o de tudo. A bem dizer,
este ladrão fora ele que o introduzira sem o saber, entre as
paredes que abrigavam a sua felicidade... sob a forma de uma
garrafa de whisky! Destapando esta garrafa, não previa que ao
mesmo tempo libertava um terrível demónio... Por razões de
comodidade, tinha instalado a forja na cave da casa, de tal
forma que a sua mulher se punha muitas vezes a ouvir com
prazer as marteladas vigorosas na bigorna e os filhos
adormeciam ao som deste ruído, tão facilmente como se lhes
cantassem uma canção de embalar.
Ó morte, porque não transpuseste tu nesse momento a entrada
daquela casa? Se te tivesses apoderado deste velho ferreiro
antes do seu declínio, a viúva teria por certo um desgosto,
mas os filhos guardariam dele uma recordação respeitosa.
Talvez, apesar de tudo, pensasses que não era ainda tempo de o
ceifares...
Não nos detenhamos sobre os pormenores. Na cave, as
marteladas não tardaram a fazer-se mais raras e mais fracas. A
esposa, imóvel, à janela, contemplava com os olhos secos os
rostos lacrimosos dos filhos. O fole deixou de servir. A
bigorna encheu-se de pó. A casa foi vendida. A mulher ficou
para sempre adormecida sob a erva do cemitério e logo os dois
filhos tiveram a mesma sorte. E o velho enlutado, desprezado
por todos, vagueava pelas estradas.
A morte, que ele chamava com todas as forças, parecia, no
entanto, não querer saber dele. 

140 141 

Um dia, chegado havia pouco à beira do oceano, julgou ouvir
uma voz:
- Vem, ó coração despedaçado! No meu seio, sem se morrer, é
possível contemplar maravilhas! Vem! Conhecerás uma vida que
os homens da terra detestam, mas que é a única que pode
trazer-te o esquecimento! Vem!
Então, respondendo a esta voz que parecia chegar-lhe de
vários pontos do horizonte, o ferreiro exclamou:
- Pois sim, aqui estou!
E foi assim que o velho Perth começou a pescar baleias.
Uma manhã, pouco antes do meio-dia, Perth, de barba
desgrenhada e com um avental de pele de tubarão atado à
cintura, encontrava-se de pé entre a forja e a bigorna. Com
uma das mãos colocara um ferro de lança sobre os carvões
incandescentes e com a outra preparava-se para puxar a
corrente do fole. De súbito, surgiu o capitão Acab trazendo na
mão um saco de cabedal cor de ferrugem. Deteve-se a alguns
passos, enquanto Perth, após ter accionado o fole
repetidamente, retirava o ferro do braseiro e, num grande
transbordar de faíscas, começava a martelá-lo sobre a bigorna.
- Essas faíscas -, disse Acab - são os teus petréis, Perth!
Pássaros de bom agoiro... mas não para toda a gente! Porque é
que elas não te queimam?
- Porque, capitão - respondeu o ferreiro, apoiando-se no
martelo -, já não há sítio nenhum onde eu possa ser queimado.
Todo eu sou uma cicatriz...
- Tu és triste, Perth. Porque falas tão calmamente? Por mim,
não sou o mais feliz dos homens. Mas, sabes, o desgosto dos
outros irrita-me quando não é temperado com um grão de
loucura. Devias fazer-te louco ferreiro. Assim, suportarias
melhor esse teu fardo. A loucura, por vezes, é uma graça do
céu... Ora diz, o que estavas a fazer?
- Estava a consertar um velho ferro de lança. Todo ele é
rugas e bossas.
- E esperas deixá-lo tão liso como era antes de todo o uso
que já teve? 

142 

- Espero sim, capitão.
- Nessas condições, penso que possas apagar do mesmo modo
todas as rugas, todas as bossas... e também certas cicatrizes,
qualquer que seja o metal?
- Rugas e bossas, sim. Mas quanto às cicatrizes...
- Ouve! - continuou Acab, pousando a mão no ombro do velho
operário. - Olha para mim, olha para a minha cara! Se te
declarares capaz de apagar esta cicatriz que me desfigura,
então porei, sem receio, a cabeça na tua bigorna e não terei
medo de sentir as marteladas entre os olhos! És capaz de fazer
esse trabalho?
- Não, capitão. Como lhe disse, rugas e bossas, sim. Mas uma
cicatriz é impossível!
- Compreendo, compreendo... ela é indelével, não é verdade?
E tu apenas a vês na minha cara. É preciso que saibas isto:
ela penetra-me na carne, e abriu caminho até ao fundo do meu
crânio... Bem, falemos de outra coisa. Olha, ouve isto!
E fez tinir o saco de cabedal, como se fosse uma bolsa cheia
de moedas de ouro.
- Também eu, Perth, quero um arpão, um arpão tão sólido que
nem todos os demónios do inferno consigam quebrar, um arpão
que se cravará na baleia branca e que fará corpo com ela, como
o osso da sua barbatana! - acrescentou ele, lançando o saco
sobre a bigorna. - Perguntarás, ferreiro, o que isto é? São
pregos... Sabes, aqueles pregos que servem para ferrar os
cavalos de corrida!
- Pregos para ferraduras de cavalos de corrida? - repetiu
Perth. - Acho que foi uma boa escolha. Não há metal mais leve
e mais resistente do que esse.
- Eu sei, ferreiro, eu sei! Esses pregos vão fundir-se como
cola feita de ossos de assassinos! Vamos ao trabalho,
fabrica-me esse arpão. Primeiro vais forjar a haste. Preparas
doze varas que hás-de torcer juntas como os arades de um cabo.
Ao trabalho! Ao trabalho! Eu próprio darei ao fole!
Um pouco mais tarde, quando as doze varas ficaram prontas, 

143

Acab examinou-as com a maior atenção. Bruscamente, rejeitou a
última, dizendo:
- Esta tem uma falha. Volta a pô-la na bigorna.
Ainda um pouco mais tarde, quando Perth ia começar a
martelar as hastes juntas, Acab, com um gesto, deteve-o,
dizendo:
- Dá-me isso!
Arquejando regularmente, pôs-se a martelar na bigorna. Perth
passava-lhe as varas incandescentes, uma após outra. A forja
erguia na atmosfera uma chama direita, deslumbrante. O sombrio
Fedallah aproximou-se em silêncio e debruçou-se sobre o fogo
como que para lhe lançar uma maldição.
Stubb, que do castelo da popa observava esta cena, murmurou:
- O que estão eles a fazer? Dir-se-ia servos de Lucifer. E o
Fedallah! Debruça-se para o fogo... Ele próprio parece um
demónio...
Finalmente a haste foi submetida pela última vez à acção do
braseiro. Depois, Perth, para a arrefecer, mergulhou-a numa
selha cheia de água. O metal silvou e o vapor fervente
elevou-se até ao rosto do capitão Acab.
Este não pôde conter uma expressão de dor.
- Perth - exclamou ele -, com que então achas que não estou
suficientemente desfigurado? Será que forjei o ferro com o
qual devo ser marcado, como um simples carneiro?
- Não, não, capitão! - apressou-se a responder o ferreiro. -
Mas este arpão... ocorreu-me uma ideia, ou melhor, um
pressentimento... O senhor não o destina à baleia branca?
- Sim, Perth, é mesmo para a baleia branca, esse diabo
branco! E agora a ponta! Isso é trabalho teu, Perth. Aí tens
as minhas lâminas de barbear, aço do melhor que há. Fabrica-me
qualquer coisa tão acerada como um pico de gelo!
Durante um momento o ferreiro olhou as lâminas como se
hesitasse em utilizá-las. 

144 

- Toma, Perth, toma lá! Eu já não preciso delas. Fiz o
juramento de não me barbear, de não comer, de nem mesmo rezar,
enquanto... mas basta. Vamos ao trabalho!
Quando a ponta, em forma de flecha, ficou soldada à haste,
Perth disse ao capitão Acab:
- Capitão, pode fazer o favor de me chegar essa selha?
- Não, não, água não! - respondeu Acab -, quero outra
têmpera para o meu arpão.
E, em voz forte:
- Tashtego, Queequeg, Daggoo! Oiçam, vocês que são pagãos!
Estão prontos a dar-me sangue suficiente para temperar este
arpão?
Os três arpoadores acederam com um sinal de cabeça. O
capitão deu a cada um deles uma picada no braço. Depois,
enquanto o sangue se evaporava sobre o aço ardente, murmurou
com expressão alucinada:
- Eu te baptizo não em nome do Pai, mas em nome do Demónio!
Por fim, servindo-se do arpão como de uma bengala, deu meia
volta e dirigiu-se para a escotilha da cabina. O barulho da
sua perna de marfim e o da haste do arpão faziam ressoar as
tábuas da ponte. Mas, no momento em que ia descer a escada da
escotilha, o capitão parou e pôs-se à escuta. Acabava de ouvir
um ruído estranho: o riso leve, sobrenatural e dilacerante do
negrinho Pip.
Durante algumas semanas, nenhum acontecimento notável se
produziu. Desde que navegávamos na imensidade azul do
Pacífico, sentíamo-nos como que ébrios de beleza. Uma tarde,
Starbuck, encostado ao filerete, contemplava o horizonte
dourado. De súbito, ele normalmente tão calmo, suspirou:
- Beleza insondável! Nunca nenhum noivo viu algo de
semelhante nas pupilas da sua futura esposa! Grande oceano,
quero esquecer os dentes dos teus tubarões! Quero esquecer que
roubas e devoras homens! Que a minha fé afugente até mesmo a
aparência da realidade! Que a minha imaginação aniquile a
memória! Que me baste, para crer, manter os olhos fixos nos
abismos! 

145 

Então Stubb, como um peixe de escamas reluzentes, saltou
para junto de Starbuck e exclamou em tom exaltado:
- Eu sou Stubb. Tenho a minha história. Conheci a dor e a
alegria. Mas juro que nunca fui tão feliz, ó Pacífico, como
desde que vogo sobre as tuas águas!
Nesse instante, os vigias assinalaram um navio. Tratava-se
do Solteirão, baleeiro de Nantucket que acabava de encher o
seu último tonel de óleo e de aferrolhar o porão, quase a
estoirar. E agora, não sem orgulho, fazia, por assim dizer, em
traje de gala, e antes de orientar a proa para o seu porto,
uma espécie de tournée por entre os outros baleeiros
disseminados ao longo da prodigiosa zona de pesca do Pacífico.
Os três vigias, empoleirados na ponta dos mastros, traziam
nos chapéus largas fitas vermelhas. À popa, via-se suspensa
uma baleeira de quilha para o ar. Um maxilar inferior de
baleia balançava na extremidade do gurupés. E por toda a
enxárcia flutuavam pavilhões e bandeiras. Cada posto de
observação continha dois barris de espermacete, que
alimentavam uma lâmpada de cobre.
À medida que o Solteirão se aproximava do Pequod, um bárbaro
rolar de tambores chegava até nós, vindo do castelo da proa.
No entanto, não havia tambores. Esta barulheira era produzida
por pancadas que alguns homens da tripulação davam sobre peles
de baleia estendidas por cima das caldeiras. No castelo da
popa, imediatos e arpoadores dançavam com raparigas de tez
bronzeada que eles tinham trazido das ilhas de que eram
oriundas, e com as quais se propunham, segundo parecia, casar
quando chegassem à América. Instalados numa baleeira decorada
com galhardetes multicores e suspensa entre o mastro do
traquete e o mastro grande, três negros, munidos de violinos e
arcos de marfim de cachalote, tocavam uma ária endiabrada. Por
fim, enquanto os marinheiros de que já falei continuavam a
bater nas peles de baleias estendidas em cima das caldeiras,
outros marinheiros começavam a demolir estas mesmas caldeiras
e deitavam ao mar os primeiros tijolos e o cimento, agora
inúteis. 

146 

O capitão, empoleirado no castelo da popa, contemplava este
espectáculo que ele próprio inspirara e que, ao que parecia,
se desenrolava apenas para seu divertimento pessoal.
Também Acab estava no castelo da popa. Mas o seu rosto,
invadido por uma barba inculta, conservava uma expressão
sombria e obstinada. E quando os dois navios cruzaram os seus
sulcos - um alegre e o outro como que carregado de sinistros
pressentimentos -, o contraste entre os dois capitães
acentuou-se mais.
Erguendo um copo e uma garrafa, o capitão do Solteirão
gritou alegremente:
- Venha a bordo! Venha a bordo!
- Viu a baleia branca? - perguntou Acab num tom de voz
desagradável.
- Mas que história! Já ouvi falar dela. Porém não acredito
nisso. Venha aqui a bordo!
- O senhor tem um ar muito satisfeito da sua pessoa! -
replicou o patrão do Pequod. - Continue o seu caminho. Perdeu
alguns homens?
- Ao todo dois homens da Islândia. Acha que vale a pena
falar nisso? Olhe, meu amigo, venha a bordo. Nós estamos
contentes. Temos o barco recheado e voltamos à terra.
Acab resmungou:
- É espantosa a descontracção destes imbecis!
Depois, em voz alta:
- Tem o barco recheado e volta para a terra! Pois bem, eu cá
tenho o barco vazio e tão depressa não volto para Nantucket!
Prossigamos cada um de nós na sua rota!
E voltando-se para a tripulação:
- Olá! Vocês aí! Velas a todo o pano e tirem o máximo
partido do vento!
E os dois navios separaram-se. Durante muito tempo, em
silêncio, os marinheiros do Pequod seguiram com o olhar o
Solteirão. Na ponte deste último a festa continuava em
crescente animação. Debruçado na armadoira da grinalda da
popa, Acab seguia também com os olhos o alegre e despreocupado
baleeiro. 

147 

Por fim, tirou do bolso um frasco com areia. Olhou-o
atentamente, depois, obedecendo a qualquer associação de
ideias, fitou de novo o Solteirão. O frasco continha um pouco
de areia proveniente de sondagens executadas ao largo de
Nantucket.
Será a sorte contagiosa? No dia a seguir ao nosso encontro
com o alegre Solteirão, matámos quatro baleias, ou melhor,
três baleias e um cachalote, este último morto pelo próprio
capitão Acab.
Era o fim da tarde. Todos os arpões tinham acertado no alvo.
O Sol e o cachalote pareciam morrer no mesmo silêncio. Uma
espécie de tristeza mística banhava o ar rosado do poente.
Calmo, mas mais triste que nunca, o capitão, sentado na
baleeira, vigiava os últimos sobressaltos da sua vítima.
Fenómeno estranho: os cachalotes, antes de morrerem, voltam a
sua enorme cabeça para o Sol. Pela primeira vez na vida, Acab
observava com atenção aquele espectáculo que o maravilhava.
"Volta-se lentamente para o Sol" - murmurava de si para si
-, "volta para o Sol a fronte audaciosa e cheia de força! É
que também ele é um adorador, um escravo fiel do fogo. Oh! Que
me seja dado assistir ainda muitas vezes a este prodigioso
espectáculo! Eis-me no coração do maior oceano do Mundo, longe
das pequenas dores e dos medíocres prazeres humanos. E, apesar
de ter nascido na terra, sinto-me irmão de tudo o que vive no
teu seio, ó Pacífico!"
Os quatro cetáceos tinham sido mortos muito longe uns dos
outros. As três baleias puderam ser rebocadas até ao Pequod
antes de anoitecer por completo. Mas o cachalote andou tanto
tempo à deriva que só foi possível alcançá-lo de manhã. Uma
baleeira - a do capitão Acab - seguira-o lentamente toda a
noite.
Nesta baleeira todos pareciam dormir, salvo Fedallah, que
acocorado à proa vigiava os tubarões. Estes andavam à volta do
cadáver e, de tempos a tempos, roçavam a embarcação.
O vento fazia um barulho de cavalos a galope. 

148 

De súbito, Acab acordou em sobressalto. Fedallah, sempre
acocorado, estava agora na sua frente. E os dois homens,
senhor e servo, cercados de trevas, pareciam ser os últimos
sobreviventes de um universo desaparecido.
- Devo ter sonhado - disse Acab.
- Com quê? Com um carro funerário? - disse-lhe Fedallah em
segredo. - Então não sabes, velho, que não vais ter nem carro
funerário nem caixão?
- Claro, Quando se morre no mar, tem de se passar sem carro
funerário...
- Sim, morrerás no decorrer desta viagem - tornou Fedallah
-, mas antes da tua morte verás dois carros funerários no
oceano. Assim o prevejo!
- Estranho espectáculo, Fedallah, um carro funerário
empenachado a deslizar sobre as ondas! E quem pegará nos
cordões do pano funerário? Não, não, Fedallah, não é amanhã
que nos será dado contemplar tal espectáculo!
- No entanto, só morrerás depois de o teres contemplado...
- E, quanto a ti, o que prevês, Fedallah?
- Que te precederei em tudo e que serei até ao fim o teu
piloto.
- Meu piloto? - repetiu Acab. - Como continuarias sendo meu
piloto para além da morte? Não, não, Fedallah, não posso crer.
Tudo o que acabaste de dizer me persuade, ao contrário, que
hei-de matar Moby Dick e sobreviver-lhe!
- Oh, velho, tu és livre de crer ou não. No entanto,
falta-me dizer-te uma terceira coisa: só o cânhamo poderá
precipitar-te no outro mundo!
Desta vez Acab soltou uma gargalhada sarcástica.
- O cânhamo, isto é, a forca! - exclamou. - Decididamente,
Fedallah, estás divagando! Como tenho a firme certeza de nunca
ser enforcado, acabarei por persuadir-me de que, pelo
contrário, sou imortal. Estás a ouvir, Fedallah, imortal na
terra e no mar! 

149 

Depois desta conversa, os dois interlocutores recaíram no
silêncio. Principiava a despontar uma aurora pardacenta. Um
após outro, os remadores endireitaram-se nos bancos. Antes do
meio-dia, o cachalote achava-se amarrado ao longo do Pequod. 

150  

XVI 

O TUFÃO 

O equador! Viria enfim o dia em que nos seria dada a
ordem de aproar na sua direcção? Agora, cada vez que o capitão
saía da cabina, o timoneiro rectificava a posição. Os
marinheiros iam postar-se sob as vergas e ficavam imóveis,
olhando ostensivamente o dobrão pregado no mastro. A tão
desejada ordem chegou finalmente. Nesse dia, por volta do
meio-dia, o capitão instalou-se numa baleeira suspensa dos
turcos e dispôs-se a verificar a posição. Terminada esta
operação, poisou o sextante no joelho e ficou-se a contemplar
o Sol, murmurando em voz surda:
- O melhor e o mais poderoso dos meus pilotos és tu, ó Sol!
Infelizmente, se me dizes onde estou, és incapaz de me dizer
para onde vou. E se te fizer esta pergunta: Onde está Moby
Dick?, não me respondes!
Depois, baixando a cabeça e olhando o sextante:
- E tu, brinquedo estúpido e apenas bom para divertir
arrogantes personagens, como os comodoros e os almirantes! A
humanidade orgulha-se de te ter inventado. Mas tu não fazes
nada senão medir ângulos e distâncias. És incapaz de me dizer
onde se encontrará amanhã tal gota de água, tal grão de areia.
E ousas afrontar o Sol! Brinquedo medíocre, brinquedo inútil,
maldito!
E atirou o sextante para a ponte. 

151 

- Não mais te confiarei o cuidado de me guiares! - continuou
ele, descendo da baleeira. - O compasso, a bússola e o
cálculo: de hoje em diante não precisarei de mais nada. Tu só
mereces isto: a destruição!
E, enquanto falava, esmagava o sextante com a perna de
marfim, pisando-o com fúria. Um rictus de triunfo cavava-lhe
as rugas do rosto. Assustada, a tripulação juntara-se no
castelo da proa.
Mas, de súbito, Acab, endireitando-se, gritou em voz
tonitruante:
- Para as vergas! Cruzem-nas bem! E tu, timoneiro, corrige o
leme!
Num ápice, as vergas foram orientadas. O navio,
graciosamente, inclinou os três mastros.
De pé, junto do gurupés, Starbuck observava ora os
sobressaltos do Pequod ora o capitão Acab, que, em passo
vacilante, se pusera a passear na ponte.
- Temível velho! - disse ele. - Para ali a consumir-se... Em
breve não será nada mais que cinza!
Stubb aproximou-se, dizendo:
- Acabo de passar junto dele. Sabe o que é que estava a
resmungar com os seus botões? Forçaram-me a ficar com estas
cartas que tenho nas mãos. São elas e não outras aquelas com
que devo jogar, ao que parece! Maldito seja! Que jogue as suas
cartas, mas que morra disso!
O céu mais sereno do Mundo abriga, por vezes, na sua forma
mais destrutiva, o trovão e o raio. Assim, nestas águas
esplendorosas do Pacífico, na vizinhança do Japão, os
marinheiros encontram muitas vezes o tufão, ou seja, a
tempestade em toda a sua força. Desaba bruscamente num azul
sem qualquer nuvem, como uma bomba numa cidade adormecida.
Ora, na tarde do dia em que o capitão esmagara o sextante, o
Pequod teve de lutar contra um tufão que se precipitava a
pique sobre ele. Algumas velas e grande parte do cordame foram
arrancados. Quando caiu a noite, o céu e o oceano, sacudidos
pela borrasca, uniram-se no mesmo rugido. Os relâmpagos
mostravam, na mastreação, pontas do cordame e farrapos de
velas estalando ao vento.
Starbuck estava no castelo da popa. Agarrado a um dos cabos
aproveitava cada novo relâmpago para, erguendo a cabeça,
tentar medir a extensão do desastre. Stubb e Flask ajudavam
alguns marinheiros a amarrar mais solidamente as baleeiras.
Porém, apesar de todos os esforços, uma destas embarcações - a
do capitão - foi danificada por uma enorme vaga, que
conseguira transpor o filerete do navio.
Stubb voltou para o castelo da popa, e disse a Starbuck:
- Raio de trabalho! Porcaria esta! O mar só faz o que lhe
apetece. É impossível lutar com ele. Olha esta vaga, por
exemplo. Veio de longe, de muito longe. E depois, pumba! A
mim, perante tudo isto, só me apetece cantar!
E cantarolou: 

Viva o tufão que sopra rijamente!
Viva o arpão, viva a baleia, ó gente!
Viva a borrasca, o vento e a rajada!
E o velhaco do mar, rapaziada! 

- Cale-se Stubb! - gritou Starbuck. - Deixe o tufão tocar
violino no nosso cordame! O senhor é valente, bem sei! Mas não
nos mace!
- Valente? - replicou Stubb. - Não sou nada valente, pelo
contrário, sou cobarde. E se canto é para me dar coragem.
Oiça, Starbuck, o único meio de me impedir de cantar é
cortar-me o pescoço.
- Imbecil! Então você é cego?
- Que eu saiba não. E olhe que você tem muita sorte se
consegue ver alguma coisa nesta escuridão!
- Ora repare! - disse Starbuck, pondo a mão no ombro de
Stubb e apontando-lhe a proa. - Olhe! O tufão vem de leste.
Pois não é essa direcção que o capitão tomou hoje mesmo, ao
meio-dia, a direcção na qual espera encontrar Moby Dick? 

152 153

Agora olhe para a baleeira dele. Onde é o rombo? Atrás, no
lugar que ele costuma ocupar. E se continua a ter vontade de
cantar, salte borda fora e vá enforcar-se onde quiser!
- Confesso que continuo sem compreender - disse Stubb. -
Vejamos, o que se passa?
Porém, Starbuck já não estava a prestar-lhe atenção.
- Diante de nós - dizia, no tom de alguém que fala consigo
próprio -, há esta porcaria de tufão que nos ataca à
marrada... Quando penso que bastava darmos meia volta para, no
fim do caminho, encontrarmos a América, as nossas casas, os
nossos lares...
Nesse momento, o imediato do Pequod teve a impressão de
ouvir, entre dois rugidos da tempestade, uma voz rouca.
- Quem está aí? - perguntou.
- Sou eu, amiga Trovoada! - respondeu o capitão Acab,
tacteando ao longo do varandim, para atingir um dos buracos de
broca.
Bruscamente, um relâmpago iluminou a sua silhueta.
O Pequod, como muitos barcos, estava provido de pára-raios,
fixos na ponta dos mastros. Mas a parte inferior deste
dispositivo, constituída por cadeias longas e finas que se
podiam quer ajustar ao porta-peias quer mergulhar no mar, só
era colocada no lugar em caso de necessidade.
Vendo o relâmpago que iluminara o capitão Acab, Starbuck
lembrou-se de repente de um dos seus mais imperiosos deveres.
- As cadeias! As cadeias! - gritou ele. - Mergulhem-nas
atrás e à frente!
- Não! - disse Acab. - Embora sejamos os mais fracos, temos
de jogar lealmente. Se nos encontrássemos no Himalaia ou na
cordilheira dos Andes, não hesitaria, para garantir a nossa
segurança, em instalar eu próprio as cadeias. Mas hoje...
Starbuck interrompeu-o abruptamente.
- Olhe! Olhe! Lá em cima... O fogo-de-santelmo!
Com efeito, as extremidades das vergas encontravam-se
rodeadas de um clarão pálido e os três mastros, coroados de
chamas brancas, pareciam arder, na atmosfera sulfurosa, como
círios gigantescos num altar.
Stubb, ocupado em prender mais solidamente a sua baleeira
por meio de uma amarra, entalou de súbito uma das mãos entre o
casco do barco e um dos turcos.
- Maldita canoa! - vociferou. - Diabos te levem!
Recuou uns passos e, erguendo a cabeça, avistou os três
clarões na ponta dos mastros. Então, gemeu:
- Santelmo, tende piedade de nós!
O resto da tripulação, petrificado, guardava silêncio. Os
marinheiros tinham-se reunido quase todos no castelo da proa,
e as suas pupilas reflectiam estranhas fosforescências. O
negro Daggoo, na primeira fila deste grupo emudecido, parecia
duas vezes mais alto. Tashtego, de boca aberta, mostrava os
dentes cintilantes e pontiagudos como dentes de tubarão.
Quanto a Queequeg, as suas tatuagens pareciam colear,
deslizando-lhe sobre o corpo como satânicas chamas azuis.
Por fim, os clarões extinguiram-se. O Pequod e a sua
tripulação voltaram a ficar envolvidos numa sombria mortalha.
Ao dirigir-se para a proa, Starbuck chocou com Stubb.
- Você parece que já não está com vontade de cantar -
disse-lhe ele, em tom irónico. - Eu ouvi-o há bocado.
- Sim - respondeu Stubb -, eu disse: Santelmo, tende piedade
de nós! Espero que esta prece seja atendida. Afinal Santelmo
talvez se interesse apenas pelos cadáveres. Por certo até se
ri... Se virmos bem as coisas, Starbuck, considero este clarão
um feliz presságio. Dá-nos a certeza de que havemos de matar
muitas baleias, aumentando assim a nossa carga de espermacete
de modo que chegue até à ponta dos mastros.
Enquanto Stubb assim falava, Starbuck quedou-se surpreso, ao
ver reaparecer, a uma luz incerta, o rosto pálido do seu
interlocutor. Erguendo a cabeça, disse: 

154 155 

- Olhe!... Olhe para aquilo!
Novamente o clarão, mais misterioso ainda que da primeira
vez, tremeluzia tanto na extremidade das vergas, como na ponta
dos mastros.
- Santelmo - repetiu Stubb -, tende piedade de nós!
Junto do mastro grande, muito perto do capitão Acab,
Fedallah lançara-se de joelhos ao chão. Acima deles, alguns
marinheiros ocupados em prender uma antena interromperam a
tarefa.
Transidos de medo e encolhidos uns contra os outros, na
enxárcia, pareciam um vespeiro pendurado num ramo de árvore.
Alguns, pelas suas atitudes, lembravam aqueles habitantes de
Herculano surpreendidos pela morte em plena marcha ou até em
plena corrida.
- Sim, rapazes! - gritara Acab. - Olhem aquela claridade
branca, olhem-na bem! Ela ilumina o caminho que há-de
conduzir-nos à baleia branca!
De súbito, sucederam-se vários relâmpagos. Os três clarões
tornaram-se mais intensos. Encandeados, todos os membros da
tripulação, incluindo o capitão Acab, tiveram de tapar os
olhos com as mãos.
- Capitão! Capitão! - gritou Starbuck -, olhe para o seu
arpão!
O arpão de Acab, aquele que ele próprio forjara com a ajuda
do velho Perth, erguia-se ainda na traseira da canoa
arrombada. E agora, uma chama lívida, bifurcada, saía-lhe da
ponta, como uma língua de serpente.
Febrilmente, Starbuck agarrou Acab por um braço, gritando:
- Deus está contra ti, velho! Renuncia! Não vás mais longe!
A nossa viagem começou mal. E continua pior ainda. Arrisca-se
a terminar em catástrofe. Deixa-me dar ordem para fazermos
meia volta! Deixa-nos voltar para a nossa terra!
Como um eco às palavras de Starbuck, elevou-se da tripulação
um murmúrio de revolta. Porém o capitão Acab, dando alguns
passos em frente, pegou no arpão e brandiu-o como uma tocha,
bramindo: 

156 157 

- Trespasso o primeiro que ouse tocar nas vergas sem que eu
próprio Lhe tenha dado ordem para tal! Juraram ajudar-me a
matar a baleia branca. Estão, como eu, ligados corpo e alma a
esta obra de destruição! Têm medo? Olhem, vejam! Eis o que eu
faço do medo! Aniquilo-o!
E, de um só sopro, extinguiu a chama bifurcada na ponta do
seu arpão. Os marinheiros, transidos de medo, dispersaram em
todas as direcções.
Um pouco mais tarde, pelo fim do primeiro quarto da noite, o
capitão Acab encontrava-se junto do leme. Starbuck
aproximou-se dele.
- Seria conveniente desaparelhar a verga da gávea grande,
capitão. Os amantilhos e os empunidoiros estão a ficar
frouxos. Que diz a isto, capitão?
- Não toque em nada! Se tivesse mais velas, içá-las-ia agora
mesmo!
- Capitão, perdeu a cabeça?
- E ainda que a tivesse perdido?
- As âncoras talvez não aguentem, capitão. Posso subi-las?
- Não suba nada! Não toque em nada! Ou melhor, agarre tudo o
que ache bom para agarrar! O quê? Desaparelhar a minha verga
da gávea grande? Por quem me toma? Pelo patrão de um barquito
de pesca? Saiba que os meus mastros foram feitos para ventos
ainda mais violentos do que este, e que tenho no crânio um
outro mastro cujas velas rasgam o ventre das nuvens! Só os
cobardes se inclinam perante a tempestade! Vou voltar para a
minha cabina. De hora a hora informar-me-á do que se passa.
Depois da meia-noite, Starbuck, julgando chegado o momento
de apresentar o seu relatório, entrou na escotilha e, após ter
batido à porta, entrou na cabina. Ninguém. O capitão Acab
devia estar dormindo no cubículo que lhe servia de quarto,
separado da cabina por outra porta. Pendurada no tecto, a
lanterna baloiçava, projectando a espaços uma claridade
indecisa sobre o armeiro. Starbuck era um homem de bem. 

158

Mas à vista das espingardas germinou-lhe no espírito um
pensamento homicida.
- Um dia - murmurou ele -, pouco faltou para me abater como
um cão! Cá está a espingarda com que me ameaçou. É esta, com a
coronha ornada de pregos. Toco-lhe com os dedos, pego-lhe...
Carregada? Sim, tem pólvora na caçoleta... Contudo, isto é
estranho. Tremo como varas verdes, eu que empunhei tantas
lanças assassinas. Deixa-me cá pensar. Que vou eu dizer ao
capitão? Que há um vento favorável. E, se tivesse coragem para
tanto, acrescentaria: Favorável ao senhor, a Moby Dick e à
destruição de todos nós!... E aqui estou eu, apertando na mão
esta arma com que me ameaçou! Que lhe importa que pereça a sua
tripulação? Pois não me disse ele que só os cobardes se
inclinam perante uma tempestade? Estamos no seio de um tufão e
ele não quer ouvir falar de pára-raios! Esmagou o sextante e
vê-se condenado a navegar por cálculo, quando nos encontramos
num dos oceanos mais perigosos do Mundo! Vamos deixar que este
velho louco nos conduza à morte? Agora está a dormir. Mas,
dentro de momentos, vai acordar. E não quererá ouvir nada: nem
a razão nem censuras nem pedidos... No entanto, haveria uma
solução... É verdade que sou cristão. A minha fé, os meus
princípios, tudo me proíbe de... Amotinarmo-nos? Prendê-lo
para o impedir de fazer mal? Não, impossível. Ficaria uma
fera. Acabaria por partir as grades da prisão... Que fazer,
meu Deus, que fazer? A terra mais próxima, o Japão, fica a
centenas de milhas. E, além disso, é-nos interdita(1). Então
que resolver? Decididamente só há uma solução. E o castigo?
Será sempre tempo de pensar nele mais tarde. A justiça?
Separa-me dela um oceano. Sim, já sei o que é preciso fazer.
Pode censurar-se o céu quando fulmina com o seu raio um
assassino em potência? Nestas condições, porque haveriam de
censurar-me se... 

*1 Na primeira metade do século xIx, o Japão estava fechado
aos Europeus. (N. do T.) 

159 

Olhou para trás de si. Depois, lentamente, pé ante pé,
avançou e encostou o cano da espingarda à porta do cubículo.
- Acab está deitado na maca - continuou em voz abafada -, a
cabeça dele deve estar a esta altura, uma pressão do dedo no
gatilho e estou salvo! Poderei voltar a beijar a minha mulher
e o meu filho... Ó velho, tenho de te matar! Senão, em menos
de oito dias, o meu cadáver vagueará pelo fundo do mar!
Senhor, Senhor, dai-me coragem!... Não, é impossível... Não me
atrevo... Capitão, capitão! O vento mudou. Larguei a grande e
a pequena gávea. Está tudo em ordem!
Como se as palavras pronunciadas pelo imediato o tivessem
atingido mesmo em sonhos, Acab gritou com tal intensidade que
fez vibrar as paredes do cubículo:
- Todos à popa! Ah! Moby Dick! Desta vez não me escaparás!
Starbuck parecia lutar com um anjo. Nas mãos trémulas como
as de um ébrio, segurava ainda a espingarda encostada à porta.
Depois, de súbito, recuou, voltou a colocar a arma no armeiro
e saiu da cabina.
Na ponte, fez sinal a Stubb.
- Um momento, Stubb! Não tenho tempo a perder. O velho está
dormindo a sono solto. Tente acordá-lo e diga-lhe... Mas você
sabe o que deve dizer-lhe.
No dia seguinte o oceano ainda não estava calmo. Levantava
enormes vagas que, batendo na popa do Pequod, o impeliam como
mãos de gigantes. O navio, na sua marcha para o equador,
rumava agora para sudoeste.
Naquele dia deram-se dois acontecimentos. No momento em que
ia nascer o Sol num céu cheio de nuvens ainda ameaçadoras, os
homens de quarto comandados por Flask sobressaltaram-se ao
ouvir gritos inarticulados. Dir-se-iam gemidos de crianças
massacradas por ordem de Herodes. Os marinheiros, paralisados
pelo terror, permaneceram imóveis, enquanto durou aquele
concerto dilacerante. No fim Flask disse:
- Talvez sejam sereias...
- Na minha opinião - murmurou um marinheiro que estava ao pé
dele -, passámos a pouca distância de um navio a naufragar e
estes gritos eram lançados pela sua tripulação no momento em
que ele se afundava.
Uma hora mais tarde, quando o capitão subiu à ponte, foi
Flask que o pôs ao corrente dos acontecimentos. Acab riu
sombriamente. Depois, deu-nos a seguinte explicação:
- Passámos, com certeza, por ilhas rochosas frequentadas por
focas. Como as suas crias se aproximassem de nós, as fêmeas
lançaram-se em sua perseguição. O que ouviram foram os seus
gritos, os seus lamentos.
Porém esta explicação só perturbou ainda mais alguns dos
nossos companheiros. Com efeito, os marinheiros experimentam
muitas vezes, perante as focas, uma espécie de terror
supersticioso. Não gostam nada de ouvir os seus gritos, mas
detestam sobretudo avistar, à superfície das ondas, os seus
crânios redondos que lhes parecem cabeças humanas. Numa
palavra, as focas, a seus olhos, só podem trazer desgraça.
O pressentimento que se apoderara da tripulação não tardaria
a ser confirmado. Pouco depois de nascer o Sol, um marinheiro
foi ocupar o seu posto de vigia no cesto da gávea do mastro de
traquete. Estaria meio a dormir? Ou menos atento que de
costume? De súbito, ouviu-se um grito prolongado. Erguendo os
olhos, os marinheiros seguiram a queda de um corpo no espaço.
Depois, baixando a cabeça, puderam, após um segundo,
contemplar algumas bolhas brancas à superfície das águas.
Imediatamente, a bóia de salvação que estava presa à popa
foi lançada ao mar. Porém nenhuma mão saiu da água para a
agarrar.
Esta bóia não passava de um simples tonel cujas aduelas,
desconjuntadas pela acção do sol, não tardaram a separar-se. 

160 161

Arrastadas pelos círculos de ferro, em breve se afundaram, sem
dúvida para irem juntar-se ao afogado, no fundo do mar e lhe
proporcionarem a dura almofada do seu último sono.
Passado o primeiro momento de consternação, teve de se
pensar em substituir a bóia. Todos os tonéis de que
dispúnhamos eram demasiado grandes e pesados. Íamos
separar-nos sem ter tomado qualquer decisão, quando Queequeg
nos propôs o seu caixão.
Segunda discussão, tão animada como a primeira. Por fim,
Stubb, pondo fim ao debate, encarregou o carpinteiro de pregar
a tampa e calafetar as juntas.
- E, quando acabares o trabalho, penduras a nova bóia no
sítio da outra.
Na verdade, poderia o Pequod ter uma bóia de salvação mais
bem adaptada ao seu destino do que aquele caixão?
No dia seguinte, os vigias assinalaram um navio de grande
tonelagem, o Raquel, que se dirigia para nós, e cuja
tripulação parecia ter-se reunido nas vergas.
Nesta altura avançávamos a bom andamento. Quando o
recém-chegado se encontrava apenas a umas cento e vinte
braças, colheu o seu imponente velame e parou.
- É um portador de más notícias... - resmungou um velho
marinheiro que estava ao pé de mim.
O capitão do Raquel pegava já no porta-voz. Porém, Acab não
lhe deu tempo de tomar a palavra.
- Viu a baleia branca? - perguntou.
- Sim - respondeu o outro -, vi-a ontem... E você, viu uma
baleeira à deriva?
Acab, preocupado sobretudo com Moby Dick, ia, mesmo assim,
responder que não vira a baleeira em questão. Contudo, ficou
calado quando reparou que o seu interlocutor mandava lançar
uma canoa à água. Uns minutos mais tarde, o capitão do Raquel
saltava para a ponte do Pequod.
Sem o cumprimentar, Acab avançou para ele.
- Onde estava ela? - gritou. - Não a matou, pois não? O que
se passou?
A resposta foi longa e precisa.
- Ontem, ao fim do dia, enquanto três das minhas baleeiras
travavam combate com várias baleias e pouco a pouco estas se
tinham afastado umas quatro ou cinco milhas do meu navio,
surgiu bruscamente das águas uma bossa branca, a de Moby Dick.
Então, mandei descer a quarta baleeira, que se lançou em
perseguição da baleia branca. Pareceu-me, segundo as
informações que me davam os vigias - pois eu ficara a bordo -,
que conseguira atingir o monstro. Depois foi arrastada a uma
velocidade louca. E não tardou a desaparecer no horizonte.
Como caía a noite, mandei regressar as outras embarcações.
Durante toda a noite, o meu navio procurou a quarta baleeira.
Mas até agora os nossos esforços foram vãos. Importar-se-ia de
nos ajudar? Bastava que seguíssemos duas rotas paralelas a
algumas milhas um do outro. Assim, poderíamos fazer a busca
numa zona muito mais vasta e sempre teríamos algumas
probabilidades de êxito...
Como Acab até ali aparentara uma frieza total, o capitão do
Raquel tornou com veemência:
- Não recuse, peço-lhe! Sabe, é que o meu filho ia naquela
baleeira! Suplico-lhe, faça-me este favor! Rogo-lhe que me
conceda quarenta e oito horas... Quarenta e oito horas
apenas... Se quiser, até posso indemnizá-lo... pago-lhe o que
me pedir! Não pode recusar-me este serviço!
O velho marinheiro que continuava ao pé de mim murmurou-me
ao ouvido:
- Acho graça ao Acab com aquela das focas! O filho deste
homem morreu. O que nós ouvimos foram os gemidos dele e dos
companheiros...
Tremendo de emoção ante a impassibilidade de Acab, o capitão
do Raquel insistia, tornava-se quase violento:
- Nem sequer se comove? O meu filho é um garoto de doze anos
que eu trouxe, como grumete, para o iniciar nos segredos da
nossa profissão. Não me vou daqui embora antes que me diga
sim! O senhor também tem um filho, capitão Acab; um filho
agora em perfeita segurança, na sua casa de Nantucket. 

162 163

Pense nele! Pense no que sentiria se estivesse na minha
situação. Ah! Comoveu-se, enfim!
E, voltando-se para a tripulação do Pequod:
- Preparem-se, rapazes! Preparem-se para cruzar essas
vergas!
Porém Acab, levantando a mão, pronunciou em voz lenta:
- Alto! Não quero que toquem numa única verga! Não conte
comigo, capitão Gardiner. Agora mesmo, estou a perder um tempo
precioso. Adeus, adeus! Que Deus o proteja e me perdoe. Mas,
bem vê, não posso atrasar-me... Tenho de voltar a partir!...
Starbuck - ajuntou, dirigindo-se ao imediato -, qualquer
pessoa estranha ao Pequod terá de sair de bordo dentro de três
minutos. E, logo a seguir, pomo-nos imediatamente a caminho!
Sem mais palavra, voltou para a cabina. O capitão Gardiner
aniquilado ante a crueldade desta recusa, quedou-se uns
instantes imóvel. Depois, recompondo-se, voltou costas,
transpôs o filerete, deixou-se cair na sua baleeira e voltou
para o Raquel.
Não tardou que os dois sulcos se afastassem um do outro.
Seguimos muito tempo com os olhos o portador de más notícias.
Este mudava frequentemente de amura, bordejava, desviava-se da
sua rota. O Raquel era como que uma mulher desvairada,
procurando desesperadamente o seu filho por todos os lados.
Parecia-nos que os dias passavam ao ritmo das vagas. O
Pequod continuava a vogar, na sua cega obstinação. Uma manhã,
os vigias assinalaram um novo navio, o Prazer, nome este por
sinal bastante mal posto. Distinguíamos à popa umas cábreas,
essas peças de madeira ligadas por cima, suportando uma
roldana, que servem para levantar as embarcações danificadas.
Nas cábreas do Prazer vinha suspensa uma baleeira com
diversos rombos.
- Viu a baleia branca? - perguntou Acab. 

164  

De pé, na armadoira do coroamento, o capitão, um homenzarrão
de faces cavadas, apontou, com o porta-voz, o esqueleto de
tábuas desconjuntadas ou quebradas que baloiçava nas cábreas e
gritou:
- Olhe para isto!
- O quê? Você matou-a? - exclamou Acab.
- Ainda não foi forjado o arpão que há-de matá-la! -
replicou o outro contemplando, na ponte, uma silhueta humana
envolta na lona de uma maca da qual alguns marinheiros, em
silêncio, estavam cosendo as bordas.
- Ainda não foi forjado? - vociferou Acab, brandindo o seu
arpão. - Repara tu, agora, homem de Nantucket! Eis a arma que
há-de matar a baleia branca. Juro enterrá-la na sua barbatana,
mesmo na fonte daquela maldita vida!
- Então que Deus te proteja, velho! - tornou o capitão do
Prazer. - Viste isto? - acrescentou, apontando desta vez a
lona. - Apenas posso dar sepultura a um dos cinco homens que
perdi ontem. Quatro afogaram-se e vagueiam agora no fundo do
mar!
Depois, dirigindo-se à tripulação:
- Estão prontos? Levantem o corpo. Ponham-no sobre o
filerete. Assim... E agora...
Erguendo as mãos num gesto de bênção, avançou para a maca e
disse:
- Dai-lhe, Senhor, a ressurreição e a vida eter...
- Ao leme, e em frente! - bradou Acab.
Porém, apesar da rapidez da manobra, os marinheiros do
Pequod aperceberam-se do ruído que fez o cadáver ao mergulhar,
e do espadanar da água - fúnebre baptismo - no casco do seu
próprio navio.
Acab, ao afastar-se, nem se deu conta de que punha em
evidência a bizarra bóia de salvação pendurada à popa do seu
barco...
De súbito, chegou-lhe aos ouvidos uma voz proveniente do
Prazer:
- Ó do Pequod! Você foge do nosso funeral! Mas é para nos
mostrar o seu caixão! 

165 

Estava um dia claro, de um azul-metálico. Céu e mar banhados
no mesmo anil. Aqui e além, na luz dourada do Sol, asas de
pássaros, doces como pensamentos feminis, sulcavam o espaço.
Horas após o nosso encontro com o Prazer, o capitão Acab,
vindo da sua cabina, encostou-se à armadoira e ficou a olhar a
sua sombra deslizando sobre as vagas. Sensibilizara-o, enfim,
o explendor da paisagem, a suavidade que flutuava na
atmosfera? Sentiria remorsos? Deixou cair uma lágrima no mar,
e o Pacífico jamais guardou em si tesouro mais precioso do que
esta ínfima gota de água...
Starbuck encontrava-se a poucos passos dele. Aproximou-se.
Acab ergueu a cabeça.
- Starbuck?
- Sim, capitão...
- Oh! Starbuck, que vento e que mar tão serenos! Foi num dia
como este - tinha eu então dezoito anos - que matei a minha
primeira baleia. Há quarenta... Sim, há quarenta anos!
Quarenta anos de pesca! Quarenta anos de privações, de
perigos, de tempestades! Quarenta anos sulcando impiedosos
mares! Desde a minha primeira viagem, não passei em terra, ao
todo, mais de três anos... Quando penso na vida que levei,
nesta solidão, em todas as fadigas, na sinistra escravatura a
que chamam o comando do navio... Quando penso em tudo aquilo
de que me tenho privado... Nunca um pouco de pão fresco, nunca
um fruto! Quando casei, passava já dos cinquenta. No dia
seguinte, eis-me a caminho do Horn. A minha mulher? Fiz dela -
pobre criatura! - a viúva de um marido vivo... Quarenta anos
de furiosas batalhas! Para quê? Tornei-me melhor ou mais rico
por isso? E foi-me arrebatada uma perna... Starbuck, tenho, na
verdade, o aspecto de um velho? Sinto-me tão pesado, tão
fraco! Não, não se vá embora! Fique aqui, junto de mim!
Deixe-me olhá-lo nos olhos! Os olhos de um homem são espelhos,
óculos mágicos. Nos seus vejo a sua casa, a sua mulher...
Oiça, Starbuck, quando eu enfrentar Moby Dick, não me
acompanhe, fique a bordo...
- Capitão! Capitão! - murmurou Starbuck. - É mesmo
indispensável matar esse maldito animal? Regressemos! Voltemos
para junto dos nossos, para a América. Tal como o senhor,
também eu tenho uma mulher, um filho. Diga uma palavra,
capitão, e rumaremos à terra que nos viu nascer. Estou certo
de que lá em Nantucket têm dias tão serenos, tão azuis como
este!
- Pois têm... Neste momento, por exemplo, está o meu filho a
acordar. Senta-se na cama. A mãe fala-lhe de mim, do seu pai,
este velho feiticeiro. E diz-lhe: "Ele anda no mar. Mas
voltará em breve para te fazer saltar nos joelhos..."
- Lá em minha casa é a mesma coisa! - exclamou Starbuck. - A
Mary prometeu-me, jurou-me, que o garoto subirá todos os dias
ao alto da colina para ser o primeiro a avistar-me quando eu
voltar... Pois bem, capitão, fica entendido, não é verdade?
Damos meia volta, rumamos a Nantucket! Venha, venha depressa!
Vamos tratar de preparar a nossa rota!...
Porém Acab, por súbita reviravolta, já não escutava.
Tremendo como varas verdes, articulou com surda violência:
- O que tenho eu? Que se passa? Não é Deus que está em mim,
mas sim um demónio velhaco, um demónio implacável que destrói
no meu íntimo até a recordação do amor humano. Possui-me,
agarra-se à minha carne. E diz-me "tem de ser - é o teu dever!
Faz o que juraste fazer. Senão , a tua consciência não te
deixará um instante em paz. Nunca mais terás um momento de
felicidade!" Percebe, Starbuck? Tenho de cumprir a minha
missão. Sou absolutamente obrigado a cumpri-la. Depois... Se
ainda nos for possível, regressaremos a Nantucket...
Starbuck!... Starbuck!
Olhou em volta. Estava só... Desesperado, Starbuck, sabendo
que, daí em diante, toda a luta seria inútil, desaparecera. 

166 167 

XVII 

A CORRIDA PARA O ABISMO 

Nessa noite, durante o quarto da meia-noite às quatro da
manhã, o capitão Acab deixou, como fazia às vezes, a escotilha
junto da qual estava sentado e foi instalar-se no seu buraco
de broca. De súbito, ficou tenso, aspirou o ar marítimo, e
disse:
- Deve andar por aí um cetáceo.
Com efeito, não tardou que os marinheiros sentissem o odor
característico que exalam baleias e cachalotes vivos, mesmo
quando ainda se encontram a grande distância. E ninguém ficou
surpreendido quando, após ter determinado com tanta precisão
quanto possível a direcção do cheiro, Acab deu ordem para se
mudar de rumo e modificar a orientação do velame.
Ao alvorecer, desdobrava-se ante os nossos olhos uma
interminável barra de água oleosa, perfeitamente calma.
- Mudem os vigias e reúnam a tripulação - ordenou Acab.
A fim de acordar os que dormiam, Daggoo, munido de uma
alavanca, pôs-se a bater com toda a força na ponte do castelo
da proa. Um após outro, os marinheiros foram saindo da
escotilha com as roupas na mão.
Quando os novos vigias ficaram instalados nos postos de
observação, Acab, erguendo a cabeça, perguntou-lhes: 

168 

- O que vêem?
- Nada, capitão - responderam.
- Icem os joanetes e os revelins! - tornou ele.
Enquanto era executada esta manobra, confeccionou à pressa
por suas mãos uma espécie de cesto formado por bolinas
entrelaçadas e, por meio de um conjunto de roldanas mandou que
o suspendessem no mastro do traquete. Depois, sentando-se
naquele cesto, ordenou que o içassem até à ponta do mastro,
mais alto que o posto de observação.
Ali, após ter observado, por instantes, o horizonte, gritou
em voz aguda, semelhante à de uma gaivota:
- O jacto! O jacto! Estou a vê-la! Estou a vê-la! A sua
bossa é uma colina de neve! É Moby Dick!
- Sim é Moby Dick - repetiram, em coro, os três vigias.
Os marinheiros, empurrando-se, precipitaram-se contra as
peias, para verem enfim a famosa baleia que tinham perseguido
por todos os mares do Mundo. Esta encontrava-se agora
aproximadamente a uma milha. A intervalos regulares,
elevava-se no ar o jacto de vapor de água, enquanto a sua
bossa reluzente surgia, mais alta do que as vagas.
- Fui eu que a vi primeiro! - disse Acab.
- Capitão, eu vi-a ao mesmo tempo que o senhor! - disse
Tashtego.
- Não, não! Não foi ao mesmo tempo! Eu é que a vi primeiro.
O dobrão é para mim, só para mim! Tinha de ser! Nenhum de
vocês podia ver a baleia branca antes de mim! Olhem! O jacto!
O jacto! O jacto!
Os gritos saíam-lhe da garganta ao ritmo dos jactos da
baleia.
- Ela vai mergulhar! - tornou ele. - Ferrar revelins e
joanetes! E você, Starbuck, prepare três baleeiras e fique a
bordo, assegurando o comando do navio. Tu, timoneiro, vai
bolinando... Mais perto! Mas devagar, devagar! Olhem, além, a
cauda! Não, é apenas um turbilhão de água escura... Os
escaleres estão preparados, Starbuck? Então, aprontem-se
todos. E ponham-me lá em baixo! 

169 

Quando voltava para a ponte, Stubb disse-lhe:
- Olhe, capitão! Ela dirige-se para sotavento. Ainda não nos
deve ter visto...
- Silêncio! - ordenou o capitão. - Para os braços das velas!
Leme todo à direita! Eu disse para ferrarem os joanetes e os
revelins! Bom, já está. Muito bem. E agora, as baleeiras!
Dentro de pouco tempo, todas as baleeiras, excepto a de
Starbuck, balançavam ao lado do Pequod. A uma ordem, os remos
entraram em acção. Acab, que conduzia o ataque, ia na frente.
Junto dele encontrava-se Fedallah, de olhos brilhantes, com um
rictus a deformar-lhe a boca.
Rápidas e silenciosas, as três ligeiras embarcações fendiam
as vagas. No entanto, foi-lhes preciso um certo tempo para
chegarem junto do inimigo.
De instante a instante, o oceano ia ficando mais liso, como
se tivesse estendido um tapete sobre as suas vagas. E, em
breve, surgiu inteira a bossa reluzente. Deslizava tranquila,
como uma ilha cercada de espuma esverdeada. Acab começava a
distinguir as menores rugas cavadas na massa da cabeça.
Espectáculo inesquecível! Júpiter, transformado em touro e
arrastando a graciosa Europa para as margens de Creta, não
ultrapassaria certamente em beleza a baleia branca, deusa do
mar, cujos movimentos elegantes e calmos deliciavam a vista.
Porém, bruscamente, depois de ter agitado, como que num sinal
de advertência, o vasto estandarte da cauda, mergulhou e
desapareceu. Sobre o turbilhão que deixava atrás de si
abateu-se um bando de pássaros.
Os remadores tinham erguido os remos, e as três baleeiras,
agora imóveis, esperavam que Moby Dick se dignasse reaparecer.
- Não voltaremos a vê-la antes que passe uma hora - disse o
capitão.
Parecia colado nas traseiras do escaler e contemplava o
espaço azul e vazio, para além do sítio onde a baleia
mergulhara.
Porém não foi longo o seu devaneio. E o olhar tornou-se-lhe
de novo atento e duro. Havia instantes que o vento começara a
refrescar e o mar ia ficando agitado.
- Os pássaros! Os pássaros! - gritou Tashtego, da baleeira
mais próxima.
Com efeito, os pássaros, quais garças levantando voo,
dirigiam-se todos em fila indiana para a baleeira do capitão.
Pararam a poucas braças e puseram-se às voltas acima das
ondas, piando alegremente. Acab sabia que estes animais têm
uma vista mais penetrante que a do homem. Inclinou-se sobre a
borda e sondou com os olhos as profundezas. Viu, subindo do
abismo, uma mancha branca mais ou menos do tamanho de uma
doninha, mas que crescia de instante a instante, e de súbito
se virou, descobrindo uma bocarra torcida, eriçada de dentes
cintilantes, a bocarra de Moby Dick!
Com um violento golpe de leme, Acab fez a sua embarcação dar
uma guinada. Depois, ordenou a Fedallah que trocasse o seu
lugar com o dele; instalou-se à frente, empunhou o arpão e
disse aos remadores:
- Peguem nos remos e reúnam-se à retaguarda!
Segundo os seus cálculos, a frente da baleeira devia estar
agora por cima da cabeça de Moby Dick. No entanto, com uma
inteligência verdadeiramente diabólica, a baleia branca
descobriu o ardil. Deslocou-se lateralmente, e, sempre de
costas, à maneira de um tubarão que acaba de escolher a vítima
e se prepara para sacrificá-la, abocou a proa da baleeira com
tal violência que o maxilar inferior, comprido e estreito,
saiu da água, cravando-se um dos seus dentes na borda do
barco. E agora, com doçura cruel, como um gato brincando com o
rato, sacudia o casco e quebrava-o lentamente...
Fedallah, de braços cruzados, mantinha-se impassível. Quanto
aos marinheiros, encolhidos na traseira da embarcação, estavam
pálidos de medo. As outras duas baleeiras tinham parado a umas
cento e vinte braças e as suas tripulações, estupefactas,
assistiam imóveis a este espectáculo. 

170 171 

Acab estava louco de raiva, pois, na posição em que se
encontrava, era-lhe impossível utilizar o arpão com qualquer
possibilidade de êxito. E, além disso, tratava-se de acudir ao
mais urgente, ou seja, tentar em primeiro lugar salvar a
baleeira... Então, com as mãos desprotegidas, vibrantes de
cólera, agarrou a hedionda maxila e tentou fazer com que esta
largasse a presa. Porém o osso escorregava-lhe debaixo dos
dedos. E como uma prodigiosa tesoura, a baleia continuou a sua
obra num crepitar de tábuas estalando. Passados alguns
segundos a baleeira estava cortada ao meio e enquanto a
traseira se afastava, levando a tripulação apavorada, o
capitão, que se agarrara à parte da frente, desequilibrou-se e
caiu de cabeça à água.
A baleia branca, decerto muito satisfeita de si, recuou,
deteve-se e ficou imóvel. Ora se deixava afundar ora voltava à
superfície levantando a vasta fronte enrugada. Passado um
momento, voltou à carga e descreveu um círculo em volta dos
destroços. Levantava com a cauda nuvens de espuma.
Preparar-se-ia para um ataque ainda mais violento do que o
primeiro?
Acab, incapaz de nadar, mantinha-se, no entanto, à
superfície. Ninguém podia socorrê-lo: nem Fedallah, sempre tão
calmo, nem os marinheiros agarrados ao mesmo destroço que o
misterioso asiático, e cada vez mais inquietos com a própria
sorte. A baleia branca traçava, em redor deles, círculos cada
vez mais rápidos, mas também mais apertados. As outras
baleeiras, intactas, não ousavam aproximar-se. Entrando na
zona tumultuosa cujo centro parecia ser a cabeça de Acab, não
arriscariam incitar o monstruoso animal a levar a cabo a
destruição das suas vítimas?
Toda esta cena fora atentamente seguida pelos vigias do
Pequod. Por fim, o navio aproximou-se. Quando já se encontrava
perto, Acab gritou:
- Starbuck! A direito sobre...
Engolido por uma vaga não pôde terminar a frase. Quando
voltou à superfície passados dois ou três segundos, na crista
de uma onda, tornou:
- A direito sobre ela! A direito sobre ela!
Resolutamente, o Pequod, a todo o pano, avançou mais,
obrigando Moby Dick a deixar de descrever círculos e a
afastar-se.
Quando o capitão Acab foi içado para a baleeira de Stubb,
tinha os olhos injectados de sangue e começava a secar-Lhe o
sal do mar nas rugas do rosto. Exausto, perdeu os sentidos.
Dir-se-ia um homem espezinhado por uma manada de elefantes.
Do mais profundo do peito subiam-Lhe lamentos, gemidos
comparáveis aos suspiros roucos que o vento das montanhas
arranca aos precipícios.
Contudo, durou pouco o seu desmaio. Erguendo-se num
cotovelo, o velho perguntou:
- O meu arpão? O que é feito dele?
- Está aqui, capitão - respondeu Stubb.
- Ponham-no junto de mim... Não falta ninguém?
- Não, capitão. Tinha cinco homens, não é assim? Salvaram-se
todos.
- Muito bem. Agora, ajudem-me a levantar... Obrigado. Nesta
posição estou a vê-la, vai para sotavento. Que jacto, com a
breca, que jacto!... Larguem-me... Larguem-me, disse eu! Já
não preciso que me amparem. A seiva da vida está voltando aos
meus ossos! Moby Dick encontra-se demasiado longe, não podemos
continuar a dar-lhe caça com as baleeiras. É mesmo com o
Pequod que vamos persegui-la. Voltemos para bordo. Icem o mais
depressa possível as embarcações, sem esquecerem o que resta
da minha.
Dez minutos mais tarde, o Pequod, a todo o pano, lançava-se
em perseguição de Moby Dick, cujo jacto, de longe em longe,
aparecia com intervalos regulares. Quando ela mergulhou, o
capitão pegou no relógio da bitácula e disse:
- Como sabem, ela só aparecerá daqui a uma hora. Apesar da
minha precedente decisão, o dobrão será para aquele que
primeiro a vir.
Passada a hora, perguntou: 

172 173 

- Quem viu Moby Dick? Para quem é o dobrão?
Ninguém levantou a voz para Lhe responder. Passou assim uma
boa parte do dia. Várias vezes Acab mandou que o içassem, no
cesto de bolinas, até à extremidade do mastro do traquete.
Depois, voltava para a ponte e ficava a passear de um lado
para o outro, erguendo de vez em quando a cabeça a fim de
interrogar os vigias. Por fim, deteve-se ante os destroços da
sua baleeira, amontoados no castelo da popa e a expressão
tornou-se-lhe mais sombria. Stubb, possivelmente para se fazer
notado, aproximou-se e disse rindo:
- Ora aqui está o cardo que o burro recusou, decerto porque
lhe picava demasiado a boca!
O capitão estremeceu.
- O quê? - exclamou. - És assim tão desalmado que te ris de
um destroço? Se não te soubesse intrépido, juraria que és um
cobarde! Perante um destroço, é de regra o silêncio!
Starbuck aproximou-se, por sua vez.
- Tem razão, capitão - disse -, não há nada mais triste,
nada mais solene do que um destroço. E é também um mau
presságio...
- Um mau presságio! Só as velhas acreditam em maus
presságios, Starbuck! Quando os deuses querem anunciar
qualquer coisa aos homens falam-lhes numa linguagem franca e
clara... E, agora, vão-se os dois embora! Vocês são como que
os dois pólos da mesma estupidez! Quanto a mim, estou só... Só
entre os milhões de seres que vivem na terra... Não tenho um
igual, um companheiro... Estou só... E vocês, aí em cima, nos
postos de observação! Continuam a vê-la? Comuniquem-nos todos
os seus jactos, mesmo que lance dez por segundo!
Caía a noite. Um último estremecimento agitava a orla
dourada do horizonte. Apesar de estar já a escurecer, os
vigias continuavam nos seus postos.
- Já não se vê nada, capitão, está muito escuro! - gritou
uma voz vinda da mastreação.
- Em que direcção viram o último jacto?
- Como sempre, na esteira do vento, capitão.
- Muito bem. Agora, que se pôs o Sol, ela vai abrandar o
andamento e apanhá-la-emos facilmente amanhã de manhã. Assim,
Starbuck, peço-lhe que ferre sobre joanetes e revelins. Tu,
timoneiro, mantém o rumo a sotavento. Quanto a vocês, aí em
cima, desçam! Stubb, encarrego-o de mandar um novo vigia para
o mastro de traquete - apenas um. É o bastante. Tome também
todas as disposições para que ele seja substituído de quarto
em quarto de hora, e isto até ao alvorecer.
Tendo distribuído assim estas instruções, aproximou-se do
dobrão pregado no mastro grande.
- Em princípio esta moeda deveria ser para mim - disse -,
mas deixo-a aqui até que a baleia branca morra. O primeiro a
assinalá-la no dia em que for morta tornar-se-á proprietário
deste disco de ouro. Se for eu, não me será aplicada a regra
do jogo, e comprometo-me a repartir por todos vós uma soma
equivalente a dez vezes o valor deste dobrão!... E agora,
deixem-me em paz!
Desceu até meio corpo na escotilha da sua cabina e
encostou-se à ponte com o queixo nas mãos. De tempos a tempos
levantava a cabeça para observar o céu. Permaneceu nesta
posição até ao despontar da aurora.
Quando rompeu o dia, instalaram-se três novos vigias nos
postos de observação. Após ter-Lhes dado tempo de perscrutarem
o horizonte, Acab perguntou:
- Estão a vê-la?
- Não, capitão.
- É porque ela vai mais depressa do que pensei... Então,
icem todas as velas, mesmo os joanetes! Ah! Ontem à noite fiz
mal... Mas não tem importância. Isto é apenas a pausa antes do
ataque!
Não tardou que o Pequod começasse a avançar a bom andamento,
deixando atrás de si uma larga fita de espuma. 

174 175 

- Lá está ela... Além, a direito, em frente! O jacto, o
jacto! - gritou de súbito um dos vigias.
- Pois é - disse Stubb -, eu já sabia... Sabia que ela não
podia escapar-nos! Sopra, sopra, baleia! Toca a tua trombeta!
Enche os pulmões de bolhas de ar! Estás ardendo, pois és
perseguida pelo demónio! O velho despojar-te-á do teu sangue
até à última gota!
Ao pronunciar estas palavras, Stubb expressava o pensamento
de quase toda a tripulação. Se, até então, alguns
experimentavam receio, sentiam-se agora arrebatados pela febre
da caça. O mágico respeito que Acab lhes inspirava aliado à
recordação da aventura vivida na véspera venceram as suas
últimas apreensões. Além disso, a calma dos seus oficiais e o
porte grandioso e resoluto do navio acabaram por persuadi-los
de que aquela luta de morte só poderia terminar
vitoriosamente.
A enxárcia estava negra de silhuetas humanas. Os
marinheiros, impelidos pela curiosidade, tinham-se instalado
no cordame, nas mais ínfimas antenas, até na ponta das vergas.
Trinta homens unidos no mesmo destino.
Minutos depois do primeiro grito, como se prolongasse o
silêncio, Acab perguntou:
- Então já não a vêem? Possivelmente enganaram-se. Moby Dick
não costuma lançar um só jacto e desaparecer.
Voltou para ú seu lugar, no cesto de bolinas, e, quando
chegou à ponta do mastro, gritou:
- Com efeito é mesmo ela! Lá está! Lá está!
A baleia branca acabava de emergir das profundezas e com uma
espécie de insolência, mais ou menos a uma milha do Pequod,
sacudia-se numa nuvem de gotinhas que caíam à sua volta como
chuva de tempestade.
- Sim, aproveita bem o tempo que te resta! - tornou Acab. -
Pois chegou a tua última hora. Já está pronto o arpão que te
há-de matar!
Depois, dirigindo-se à tripulação:
- Todos para a ponte, salvo o vigia do traquete! Aparelhar
as baleeiras!
Os marinheiros, sem mesmo utilizarem os enfrechates,
deixaram-se escorregar pelos óvens, enquanto Acab, tão
rapidamente quanto possível, descia do seu poleiro. Foi
instalar-se na canoa de reserva que lhe tinham preparado na
véspera, e gritou:
- Ao mar! Ao mar! Você, Starbuck, encarrega-se do comando do
navio. Mas não se esqueça: fique a alguma distância das
baleeiras, sem se aproximar demasiado! Ao mar! Ao mar!
As três baleeiras puseram-se em linha; a de Acab ao centro.
A baleia branca, talvez desejando iniciar ela própria o
ataque, lançou-se na sua direcção.
- Temos de avançar a direito sobre ela, é preciso entrar no
seu jogo! - disse Acab com febril entusiasmo. - Assim não nos
verá, pois só vê para os lados, e poderemos tomar a iniciativa
à vontade!
Porém, Acab enganava-se nas suas previsões. Moby Dick
parecia mesmo resolvida a iniciar o ataque. Em poucos
segundos, a uma velocidade prodigiosa, de bocarra escancarada
e batendo a cauda, atingiu as baleeiras, com a intenção não só
de as separar umas das outras, mas também de as destruir. Já
as três lanças e os três arpões se lhe tinham cravado na carne
e as três baleeiras, habilmente manobradas, afastavam-se a
tempo.
Começou então um combate que parecia tornar-se interminável.
Levando na bossa as armas dos seus inimigos, a baleia branca
pôs-se a rodopiar em todos os sentidos. Nestas incessantes
evoluções, não tardou a emaranhar as três linhas, tornando-as
cada vez mais curtas. Acab sacudiu a sua, na esperança de
conseguir por este meio desembaraçá-la. Mas, nesse momento,
lanças e arpões presos nas linhas e apertados numa espécie de
feixe, abateram-se com uma força inaudita sobre a borda da sua
embarcação. Compreendendo que tudo estaria perdido se não
tomasse rapidamente uma decisão, Acab, puxando da faca, cortou
a sua própria linha. Depois, levantou o feixe de armas e
atirou-o ao mar. 

176 177 

Neste instante, a baleia branca deu uma volta sobre si
própria no emaranhado das duas linhas, atraindo com uma força
irresistível as canoas de Flask e de Stubb. Por fim, com um só
golpe da cauda, desmantelou as duas embarcações tão facilmente
como se fossem cascas de noz. Quando desapareceu - pois no
segundo que se seguiu à façanha, mergulhara - nada ficou à
superfície além de fragmentos de tábuas e as duas tripulações
naufragadas que procuravam agarrar-se aos barris utilizados
como bóias de salvação.
Acab gritou:
- A eles! Têm de ser socorridos!
Aproximou-se, com algumas remadas, do sítio onde Flask,
Stubb e os companheiros começavam a duvidar se conseguiriam
escapar ainda muito tempo aos dentes dos tubarões. Foi então
que, qual flecha, a baleia branca subiu das profundezas,
levantou com a vasta fronte a baleeira do capitão e a fez ir
pelo ar, para logo cair de quilha voltada para cima. Acab e os
seus homens, soprando como focas, libertaram-se dela com
grande dificuldade.
Moby Dick permaneceu ali um momento. De vez em quando,
sempre que se sentia tocada por um escolho, deslocava-se
ligeiramente e esmagava-o, com uma violenta pancada da cauda.
Quando se certificou de que estava concluída a tarefa, voltou
o crânio enrugado para o vento e retirou-se com o ar calmo de
um viajante.
O Pequod assistira à batalha. Julgando chegada a altura de
intervir, Starbuck mandou lançar ao mar uma canoa que recolheu
não só os homens, mas também os barris, os remos, as lanças e
os arpões torcidos, as tábuas partidas.
Havia contusões, esfoladelas, luxações. Em resumo, nenhum
ferimento grave. O próprio Acab, que conseguira agarrar-se à
carcaça da sua baleeira, parecia menos extenuado do que na
véspera.
Quando o ajudaram a içar-se para a ponte, todos os olhares o
fixaram. Para manter o equilíbrio tinha de apoiar-se ao ombro
de Starbuck, pois da sua perna de marfim não ficara mais que
uma espécie de esquírola! 

178 179 

- Oh! Starbuck! - dizia ele. - Às vezes é bom procurarmos e
acharmos um apoio... Lamento não o ter feito mais vezes no
decorrer da minha existência...
O carpinteiro aproximou-se.
- Foi a virola que cedeu, capitão - disse -, contudo fi-la
bem sólida...
Por sua vez, Stubb chegou-se também e perguntou num tom de
sincera solicitude:
- Nada partido, capitão? Assim o espero.
- Ah! Sim! Olhe para isto! Só ficou um pedaço! Mas repare,
Stubb, apesar de me ver privado desta perna que ocupava no meu
corpo tanto lugar como os meus membros vivos, sinto-me
intacto! Ninguém pode atentar contra a minha integridade: nem
a baleia branca, nem o diabo em pessoa! Existe um projéctil
tão potente que penetre até às profundezas do mar? Existe um
mastro tão alto que fure o tecto do céu?
E erguendo a cabeça para se dirigir aos vigias:
- Que direcção tomou ela?
- Sempre a mesma, capitão. A sotavento.
- Então, corrige o leme e a todo o pano! Você, Starbuck,
reúna as tripulações das baleeiras e mande aparelhar as canoas
de reserva!
- Capitão, se me permite, ajudo-o a andar.
- É verdade, obrigado. Fiquei em bons lençóis, com este
pedaço de osso à guisa de perna! Passe-me essa lança que está
encostada ao filerete. Servir-me-á de bengala. E faça a
chamada às tripulações das baleeiras... Tenho a certeza de que
ainda não vi o Fedallah. Não é possível... Seria muito
estranho... Depressa, faça a chamada!
Feita a chamada, tiveram que render-se à evidência: Fedallah
continuava invisível.
- Talvez fosse arrastado pela... - começou Stubb.
- Que a febre-amarela te consuma! - bradou o capitão. - E
vocês, o que estão para aí a fazer? Vamos, corram, revistem o
navio de alto a baixo. Mas encontrem-no, por Deus,
encontrem-no!
Um após outro os homens voltaram, anunciando ao capitão que
não encontravam Fedallah.
- Creio lembrar-me agora, capitão - disse Stubb -, que ele
foi arrastado pela sua linha...
- Arrastado? Arrastado? Essa palavra soa-me aos ouvidos como
um dobre de finados... E o meu arpão? Desaparecido, também
ele? Cravado no corpo de Moby Dick... Ah! Mas isto não acaba
aqui! Não, não acaba aqui! Depressa, aparelhem as baleeiras!
Juntem os remos e as armas que ainda podem servir! E, repito:
a todo o pano! Depressa, depressa. Se for preciso dou dez
vezes a volta ao globo terrestre! Juro por tudo quanto há de
mais sagrado: hei-de matá-la, hei-de matá-la!
E o capitão Acab calou-se, ofegante. Starbuck, que
continuava junto dele, disse-lhe:
- Não, capitão, não! Nunca conseguirá matá-la. Pare enquanto
ainda é tempo. Suplico-lhe em nome de Jesus Cristo: acabe com
esta loucura! A perseguição dura há dois dias e, já por duas
vezes, a baleia branca esteve a ponto de nos aniquilar. Tome
cuidado! Depois de lhe ter arrebatado a sua perna viva, acaba
de quebrar a artificial! É como que uma advertência do seu
anjo-da-guarda. Que mais quer? Deveremos perseguir esse
maldito animal até que nos faça merguLhar a todos nos
infernos?
- Starbuck - respondeu Acab serenamente -, há já algum tempo
que sinto por ti uma estranha atracção, desde aquele dia,
lembras-te?, em que lemos nos olhos um do outro. Porém, quando
me falas da baleia branca, tornas-te para mim um estranho,
quase um inimigo. Fica sabendo isto: Acab há-de ser para
sempre Acab. Aliás, o que aconteceu hoje estava escrito desde
toda a eternidade. Tu e eu já o sabíamos no princípio das
idades, muito antes que este oceano rolasse as suas vagas. Eu
obedeço a ordens vindas de outras paragens. Tu, Starbuck, que
és meu subordinado, procede de forma a executar as minhas!
Depois, voltando-se para a tripulação: 

180 181 

- Vocês aí, olhem-me bem! Sou um velho, esgotado, doente.
Nem já me posso ter em pé sem o apoio de um ombro amigo ou de
uma bengala. Mas continuo a ser o vosso chefe. A luta que
empreendi conduzi-la-ei até ao fim, aconteça o que acontecer!
Oiçam: a baleia branca subiu à superfície dois dias seguidos.
Amanhã subirá outra vez, podem estar certos. E será para
lançar o seu último jacto! Dar-lhe-emos o golpe de
misericórdia! Estão prontos?
- Estamos, sim, capitão, estamos prontos! - gritaram os
marinheiros entusiasticamente.
Quando toda a tripulação voltou para o castelo da proa,
Acab, ficando só, murmurou:
- O medo... Com que facilidade eu o dissipo nos outros,
mesmo quando, como hoje, ele me envenena a alma! Fedallah! O
que foi que ele me disse? Que me precederia, que me guiaria,
que seria meu piloto na morte... Porém, logicamente, para que
seja meu piloto, meu guia, terei de voltar a vê-lo uma vez
mais! Há aqui qualquer coisa de incompreensível... Um
mistério, evidentemente. Problema delicado... No entanto, eu,
Acab, hei-de compreender, acabarei por resolver este problema!
Quando caiu a noite, a baleia branca continuava visível a
sotavento.
Então, como na véspera, ferraram algumas velas, e o navio
abrandou o andamento. Toda a noite os marinheiros trabalharam,
aparelhando as baleeiras de reserva e endireitando as armas
danificadas, enquanto o carpinteiro confeccionava uma nova
perna artificial com um pedaço de madeira proveniente da
baleeira desmantelada do capitão.
Acab voltara para a escotilha e, encostado à ponte com o
queixo nas mãos, espiava o aparecimento do primeiro raio de
Sol. A aurora do terceiro dia surgiu clara e fresca. O vigia
do mastro do traquete desceu à ponte, sendo imediatamente
substituído pelos três vigias habituais, e também por
numerosos marinheiros empoleirados aqui e além nas vergas.
- Estão a vê-la? - perguntou o capitão.
Como lhe respondessem negativamente, acrescentou:
- Vigiem com atenção o sulco dela. De um momento para o
outro vê-la-ão aparecer.
E quase em voz baixa:
- Que belo dia! Não está, de certeza, nenhum mais belo em
todo o Mundo. Dir-se-ia que o universo é uma casa novinha em
folha, apenas destinada a ser habitada por anjos!
Passaram alguns minutos.
- O que vêem?
- Nada, capitão.
- Como, nada? E o Sol a subir, a subir! Então, ninguém quer
o dobrão? A não ser que... Sim, deve ser isso: ultrapassei-a.
Agora é ela que procura caçar-me! Devia ter calculado... Meia
volta! Meia volta! Todos para a ponte excepto os vigias. Aos
braços das vergas!
Instantes mais tarde, o Pequod, com vento contrário, tendo
virado de bordo, sulcava agora a espuma da sua própria
esteira.
- Só nos faltava mais esta: vento de frente! - murmurou
Starbuck para consigo. - Quer então lançar-nos na bocarra do
monstro? Procedi mal não o impedindo de fazer a sua vontade.
Obedecendo-Lhe, desobedeço a Deus!
- Starbuck - gritou o capitão -, ajude aqui a instalar-me no
cesto.
- Sim, capitão - respondeu o imediato.
Passou uma hora. E, enfim do alto do seu poleiro na ponta do
mastro do traquete, Acab avistou de novo o jacto da baleia
branca e, no mesmo instante, soaram gritos de alegria vindos
dos postos de observação:
- O jacto! O jacto!
- Vou defrontar-te pela terceira vez, Moby Dick! - disse
Acab. - Mas ainda estás muito longe para que mande já lançar
as baleeiras ao mar. É inútil fugires. Apanhar-te-ei!
E dirigindo-se aos vigias:
- Continuem de olho alerta. E estejam descansados: amanhã,
talvez ainda esta noite, quando a baleia branca estiver 

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solidamente amarrada ao navio, teremos tempo de conversar!
Pediu que o descessem para a ponte e deu calmamente algumas
ordens. Na altura própria, mandou lançar as embarcações ao
mar. Instalou-se na sua. Quando Starbuck se preparava para
soltar o tirador que passava por uma das roldanas, deteve-o
com um gesto, dizendo-lhe:
- Caro Starbuck, é a terceira viagem que assim imponho ao
meu querido navio...
- É verdade, capitão. Mas assim o quis!
- Sabes, Starbuck, que alguns navios não regressam ao seu
porto, perdidos pessoas e bens...
- Sei-o bem de mais, capitão.
- Eu estou velho, Starbuck!... Dar-me-ia prazer um aperto de
mão.
Apertaram as mãos, fitando-se intensamente. Starbuck, com os
olhos brilhantes de lágrimas, exclamou:
- Capitão, capitão, o senhor é uma alma nobre! Fique a
bordo! Não tente o destino! Quem lho implora é um homem
corajoso!
- Para o mar! Para o mar! - bradou Acab arrancando-se ao
abraço do seu imediato.
Instantes depois, a baleeira do capitão contornava a popa do
Pequod. Starbuck, debruçado no filerete do navio, gritou:
- Os tubarões! Volte, capitão, volte!
Mas Acab não o ouviu, pois estava já dando ordens em voz
tonitroante, e os remadores, aplicando todas as forças nos
remos, impeliam rapidamente a baleeira.
Porém, Starbuck não se enganara. Tinham surgido numerosos
tubarões à volta da embarcação e alguns tentavam morder os
remos cada vez que estes mergulhavam na água.
Mas, facto surpreendente, os esqualos pareciam
desinteressados das outras baleeiras... A verdade é que os
abutres sabem antecipadamente qual é a presa que lhes está
reservada.
De vez em quando, o capitão voltava a cabeça, olhando o
navio. De súbito, por meio de um sinal combinado, emitido
pelos vigias, compreendeu que a baleia mergulhara. Para estar
perto dela no momento em que viesse à superfície, continuou
imperturbavelmente na sua rota, não sem resmungar mais para si
próprio do que para os companheiros:
- Carreguem nos remos, rapazes, carreguem! Ah! Ah!
Porque havia eu agora de ter medo se só o cânhamo me pode
matar? Nem carro funerário, nem caixão...
Quando pronunciava estas palavras, as águas em redor da
baleeira incharam lentamente desenhando largos círculos.
Depois elevaram-se. Parecia que deslizavam no cimo de um
iceberg submerso. Por fim, subiu das profundezas uma espécie
de rugido. A tripulação retinha a respiração. E, com um salto
oblíquo, uma silhueta imensa, eriçada de lanças e de arpões,
coberta por um emaranhado de linhas, estilhaçou a superfície
verde do oceano e projectou, acima de si, a mais de trinta pés
da altura, feixes de vapor.
- Em frente! - gritou o capitão.
As embarcações lançaram-se ao ataque. A baleia branca,
irritada devido aos ferimentos que lhe tinham infligido no dia
anterior, parecia possessa do demónio. Franzindo as rugas da
colossal cabeça, precipitou-se, como na véspera, entre as
baleeiras, separou-as brutalmente e sem fazer caso da de Acab,
produziu vários estragos nas outras duas. Depois, afastou-se
como uma flecha, parou e dispôs-se a voltar à carga.
Neste instante, Acab não conseguiu reter um grito. Acabava
de ver, preso às costas da baleia pelas linhas entrelaçadas,
um corpo humano, o de Fedallah! Tinha as roupas esfarrapadas e
os olhos, quase fora das órbitas, pareciam fitar o homem do
qual predissera o destino.
Acab deixou cair o arpão que empunhava.
- Fedallah! - gemeu ofegante. - Eu bem sabia que tinha de
voltar a ver-te! Anunciaste-me dois carros funerários. Eis
então o primeiro! Mas o segundo, onde está? É aí que te
espero! Nem tudo está perdido!  

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E dirigindo-se às embarcações danificadas:
- Vão para o navio! Já não preciso de vocês.
Achou também conveniente estimular os homens da sua
tripulação:
- E vocês façam por me obedecer! Têm medo, não é assim? Pois
bem, fiquem sabendo: o primeiro que eu veja saltar borda fora
trespasso-o com um só golpe de arpão!... Onde está a baleia
branca? Teria voltado a mergulhar?
Porém, Moby Dick não mergulhara. Dera meia volta e
afastava-se tranquilamente.
Da ponte do Pequod, Starbuck gritou:
- Capitão, ainda é tempo! Desista! Bem vê que ela parece
recusar o combate! Por favor, desista!
Acab limitou-se a ordenar aos remadores que se lançassem em
perseguição do animal. Quando passou perto do seu navio viu
Tashtego, Queequeg e Daggoo que, a toda a pressa, subiam já
para os postos de observação, enquanto Flask e Stubb, ajudados
pelas suas tripulações, principiavam a reparar as embarcações
danificadas, já suspensas a meio flanco do Pequod.
- Starbuck! - disse Acab. - Vire de bordo e siga-me a uma
distância razoável!
Estaria a baleia branca fatigada? As armas e o cadáver
presos à sua carne prejudicar-lhe-iam os movimentos? Decidira
utilizar um meio ainda mais seguro que a força: a astúcia?
Parecia afastar-se contravontade, quase lentamente.
Acab teria podido alcançá-la com facilidade se os tubarões,
cada vez em maior número à volta da baleeira, não tivessem
continuado a despedaçar os remos.
- Não façam caso! - dizia ele aos remadores. - Remem sempre
com força, com toda a força! Utilizem todas essas maxilas como
pontos de apoio. São mais sólidas do que a água!
- Mas, capitão - respondeu-lhe um dos marinheiros -, cada
vez que mordem, os remos vão ficando mais curtos...
- Tenham calma! Eles ainda hão-de durar bastante tempo!
Quedou-se um momento, pensativo. E perguntava de si para si:
"Porque é que estes tubarões nos seguem? Quem esperam eles
saborear? Moby Dick ou eu?..."
Depois, em voz alta:
- Mais um esforço, rapazes! Já estamos perto! Que alguém
tome o meu lugar no leme. Eu passo para a frente.
Passados dois minutos, a embarcação vogava ao longo do
flanco da baleia branca. Esta parecia ter parado por completo.
Não tardou que Acab se achasse junto da sua bossa, na nuvem
formada pelo jacto de vapor de água. Então, soltando um brado
formidável, ergueu-se e, de toda a sua altura, lançou o
arpão.
Despertada pela dor, a baleia branca rolou sobre si própria,
levantando ao redor do corpo enormes vagas. Prevendo o que ia
passar-se, Acab conseguiu manter o equilíbrio.
Porém, três dos seus remadores foram atirados ao mar. Dois
puderam ainda agarrar-se à borda do barco e voltar para o
banco. Quanto ao terceiro, os companheiros abandonaram-no à
sua sorte. Contudo ficou à superfície. Num movimento
espantosamente rápido e ligeiro, Moby Dick recompôs-se e
afastou-se, no mar encapelado. Acab ordenou ao homem do leme
que aguentasse a linha com firmeza e aos remadores que se
voltassem nos bancos.
- Agora, remem a toda a força! - acrescentou. - Vamos tentar
rebocá-la!
Os remadores empregaram toda a sua força, a proa da baleeira
ergueu-se. Mas a linha, provavelmente submetida a uma tracção
mais forte, partiu-se, com um ruído de explosão.
- Que é isto? - bradou o capitão. - Qualquer coisa se
quebrou em mim! O que foi... Não... Não... não tenho nada.
Continuo a ser o mesmo... Meia volta! Meia volta! A ela! A
ela!
Quando ouviu a embarcação cair na água, a baleia branca
voltou-se. Ao fazer este movimento, viu a massa negra 

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do Pequod. Que se passou então com ela? Pareceu-lhe
encontrar-se ante o seu mais temível inimigo? Subitamente,
fazendo estalar as maxilas na espuma cintilante, carregou, em
direcção à roda da proa do navio.
Na baleeira, Acab, cambaleando, levara as mãos ao rosto.
- Estou a ficar cego! Tenho que tactear para encontrar o
caminho. Já é noite?
Os marinheiros, de novo nos bancos, gritavam:
- A baleia! A baleia! Vai atacar o Pequod!
- Aos remos, meus filhos, aos remos! - disse Acab -, Sim...
Sim, ainda vejo claro. O meu navio! O meu navio! Não querem
ajudar-me a salvá-lo?
Os remadores voltaram a empunhar os remos, mergulharam-nos
na água... No entanto, quase logo a seguir, deram-se conta de
que havia uma avaria à proa. Duas pranchas, já desconjuntadas,
afastavam-se cada vez mais uma da outra. A baleeira
afundava-se de instante a instante. Dentro de segundos a borda
atingiria o nível das vagas...
Ao mesmo tempo, Tashtego, num dos postos de observação do
Pequod, e Starbuck, junto de Stubb no gurupés, viram o monstro
investir na sua direcção.
- A baleia! A baleia! Timoneiro, leme a barlavento! Não, não
quero morrer como uma mulher... E eu que tanto implorei...!
Acab, Acab! Eis o resultado da tua loucura!.. Devagar,
timoneiro, devagar! Não, não, a barlavento, outra vez!...
Ei-la! Vai atirar-se a nós! Senhor, tende piedade!
- Calma, Starbuck! - disse Stubb. - Eu cá estou-me nas
tintas para a baleia branca! Estou-me mesmo nas tintas para
ti, maldito bicho!... Mas, apesar de tudo... Apesar de tudo, é
duro morrer assim... Ah! Como eu queria estar agora lá na
terra onde crescem as cerejas! Pagaria caro para comer uma só
cereja antes de morrer!
A tripulação juntara-se à proa do Pequod. Os marinheiros,
petrificados, fixavam a baleia que avançava, avançava sempre,
projectando na sua frente um semicírculo de espuma.
O aríete da sua fronte embateu a estibordo, na proa do
navio, fazendo estremecer violentamente todo o casco. Vários
homens caíram de cabeça, enquanto em cima na mastreação os
arpoadores sentiam o crânio vacilar nos pescoços vigorosos. E,
quase imediatamente, chegou-lhes aos ouvidos o rumor da água
que se engolfava pela brecha com a violência de uma torrente
despenhando-se num precipício!
De pé, na sua baleeira, Acab gemia:
- O meu navio! É ele... é ele o segundo carro funerário!
A baleia branca mergulhou por baixo do Pequod, deslizou ao
longo da quilha. Depois, decerto reconsiderando, voltou a
subir à superfície, afastou-se da sua vítima e deteve-se a
poucos passos da baleeira do capitão.
- Tenho de voltar as costas ao Sol! - continuava ele. -
Resta-me um arpão... O meu navio! Estou então condenado a
morrer longe de ti? Porque me vejo privado desta satisfação?
Deverá a minha morte ser tão solitária como foi a minha vida?
E em voz mais alta:
- Mas a ti, baleia branca, combater-te-ei até ao fim!
Atingir-te-ei mesmo do fundo do inferno! Vê! Escarro todo o
meu ódio no último fôlego! Aí tens! O meu último arpão!
O arpão zuniu no ar. Atingida, a baleia fugiu. A linha,
folgada, logo se emaranhou. Acab inclinou-se para a
desembaraçar. Mas, neste instante, uma volta do cabo apanhou-o
pelo pescoço e, silenciosa como um carrasco turco
estrangulando a sua vítima, arrastou-o para o abismo...
A tripulação da baleeira quedou-se uns instantes
petrificada. Depois, os remadores voltaram-se para o navio.
- Onde está o Pequod? Meu Deus, onde está?
Então, viram como que uma espécie de longo nevoeiro. Apenas
os mastros emergiam, e as silhuetas dos três fiéis arpoadores
desenhavam-se ainda nos postos de observação.
Quando tudo terminou, quando a própria baleeira foi engolida 

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quase ao mesmo tempo que o Pequod, as aves, acorrendo em
grande número, ficaram a rodopiar sobre o abismo. Depois, a
imensa mortalha do mar fechou-se e continuou a rolar ao mesmo
ritmo de há cinco mil anos atrás. 

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EPÍLOGO 

SÓ EU REGRESSEI DE LÁ, PARA TO DIZER
(Livro de Job) 

Terminou o drama. Então porque aparece agora este homem à
boca de cena? Porque neste naufrágio houve um sobrevivente.
Pelo maior dos acasos, após o desaparecimento de Fedallah
fui eu a pessoa designada para substituí-lo à proa da baleeira
do capitão. Quando da catástrofe, fui eu o único dos três
marinheiros projectados borda fora que não conseguiu voltar
para a embarcação. Bom nadador, pude assistir a todo o
espectáculo. Porém, quando o Pequod soçobrou, senti-me
arrastado no prodigioso turbilhão cavado pelo afundamento do
navio. No centro e no fundo deste turbilhão avistei um ponto
negro que, de súbito, subiu à tona de água. Era o esquife-bóia
de salvação de Queequeg! Agarrei-me a ele, e, desta maneira,
consegui flutuar durante um dia e uma noite. Os tubarões
deslizavam junto de mim, tão inofensivos como se estivessem
amordaçados. E as aves marinhas, carnívoras, sobrevoavam-me
sem me atacar, conservando, se assim posso expressar-me, o
bico na bainha.
Ao segundo dia, surgiu um navio, aproximou-se e içou-me para
bordo. Era o Raquel. Procurando sempre o seu filho, recolheu
apenas um órfão.  

FIM