terça-feira, 26 de abril de 2011

História Cultural...(O grande massacre de gatos)



O Grande Massacre de Gatos

(Robert Darnton)

Agradecimentos
       Este livro nasceu de um curso, História 406, que venho dando na Universidade de Princeton desde 1972. Inicialmente, o curso era apenas uma introdução à história das mentalidades, mas acabou por se transformar num seminário de história e antropologia, graças à influência de Clifford Geertz que, há seis anos, ministra-o comigo, e ao faze-lo, nem vem ensinando a maior parte do que sei sobre antropologia. Quero manifestar a ele, e aos nossos alunos, a minha gratidão. Também devo muito ao Instituto de Estudos Avançados de Princeton, onde comecei a escrever este livro, como participante de um programa em torno de autoconsciência e mudança histórica, financiado pela Fundação Andrew W. Mellon. E, finalmente, gostaria de agradecer à Fundação John D. e Catherine T. MacAthur, que  me concedeu uma bolsa cobiçada, possibilitando-me interromper meu trabalho normal para me empenhar – levando a termo – numa tarefa que deve ter parecido arriscada.
Apresentação
Este livro analisa as maneiras de pensar na França do século XVIII. Tenta mostrar não apenas o que as pessoas pensavam, mas como pensavam – como interpretavam o mundo, conferiam-lhe significado e lhe infundiam emoção. Em vez de seguir a estrada principal da história intelectual, a pesquisa conduz para o território ainda inexplorado que é conhecido na França como história das mentalidades. Este gênero ainda não recebeu uma designação em inglês, mas poderia, simplesmente, ser chamado de história cultural; porque trata nossa própria civilização da mesma maneira como os antropólogos estudam as culturas exóticas. É História de tendências etnográfica.
A maioria das pessoas tende a pensar que a História Cultural aborda a cultura superior, a Cultura com C maiúsculo. A história da cultura com c minúsculo remonta a Burckhardt, se não a Heródoto; mas ainda é pouco familiar e cheia de surpresas. Então, o leitor pode querer uma palavra de explicação. Enquanto o historiador das idéias esboça a filiação do pensamento formal, de um filósofo para outro, o historiador etnográfico estuda a maneira como as pessoas comuns entendiam o mundo. Tenta descobrir sua cosmologia, mostrar como organizavam em seu comportamento. Não tenta transformar em filósofo o homem comum, mas ver como a vida comum exigia uma estratégia. Operando ao nível corriqueiro, as pessoas comuns aprendem a “se virar” – podem ser tão inteligentes, à sua maneira, quanto os filósofos. Mas em vez de tirarem conclusões lógicas, pensam com coisas, ou com qualquer material que sua cultura lhes ponha à disposição, como histórias ou cerimônias.
    Que coisas são boas para se pensar com elas? Claude Lévi-Strauss fez essa pergunta com relação aos totens e tatuagens da Amazônia, há vinte e cinco anos. Por que não tentar aplicá-la à França do século XVIII? Porque os franceses daquele século não podem ser entrevistados, responderá o cético: e , indo direto ao caso, ele acrescentará que os arquivos jamais podem servir de subtitutivos para o trabalho de campo. É verdade, mas os arquivos do Antigo Regime são excepcionalmente ricos e sempre é possível fazer perguntas novas ao material antigo. Além disso, não se deve imaginar que o antropólogo trabalhe facilmente com seu informante nativo. Ele também se depara com áreas de opacidade e silêncio, e tem de elucidar a interpretação que faz o nativo do pensamento dos outros nativos. A vegetação rasteira da mente pode ser tão impenetrável no campo quanto na biblioteca.
      Mas uma coisa parece clara a todos os que voltam do trabalho de campo: os outros povos são diferentes. Não pensam da maneira que pensamos. E, se queremos entendeder sua maneira de pensar, precisamos começar com a idéia de captar a diferença. Traduzindo em termos do ofício do historiador, isto talvez soe, simplesmente, como aquela familiar recomendação contra o anacronismo. Mas vale a pena repetir a afirmativa, porque nada é mais fácil do que deslizar para a confortável suposição de que os europeus pensavam e sentiam, há dois séculos, exatamente como fazemos agora – acrescentando-se as perucas e sapatos de madeira. Precisamos de ser constantemente alertados contra a falsa impressão de familiaridade com o passado, de recebermos doses de choque cultural.
     Não há melhor maneira, acredito, do que peregrinar pelos arquivos. È difícil ler-se uma carta do Antigo Regime sem deparar com surpresas – qualquer coisa, desde o constante pavor de dor de dente, que existia em toda parte, até a obsessão de entrançar esterco para exibir nos montes de adubo, que permaneceu confinada a certas aldeias. O que era sabedoria proverbial para nossos ancestrais permanece completamente opaco para nós. Abrindo quaisquer livros de provérbios do século XVIII, encontramos coisas como: “Quem é rancheiro, que assoe o nariz”. Quando não conseguimos entender um provérbio, uma piada, um ritual ou um poema, temos a certeza de que encontramos algo. Analisando o documento onde ele é mais opaco, talvez se consiga descobrir um sistema de significados estranho. O fio pode até conduzir a uma pitoresca e maravilhosa visão de mundo.
     Este livro tenta explorar essas visões de mundo pouco familiares. Seu procedimento é examinar as surpresas proporcionais por uma coleção improvável de textos: uma versão primitiva de “Chapeuzinho Vermelhos” (“Little Red Hiding Hood”), a narrativa de um massacre de gatos uma bizarra descrição de uma cidade, um curioso arquivo que mantinha um inspetor de polícia – documentos que não se pode considerar típicos do pensamento do século XVII, mas que fornecem maneiras de penetrar nele. A exposição começa com as expressões mais vagas e gerais da visão de mundo e se torna cada vez mais precisa. O capítulo 1 fornece uma exegese de folclore que era familiar a quase todos na França, mas especialmente pertinente aos camponeses. O capítulo 2 interpreta as tradições de um grupo de artesãos urbanos. Subindo na escala social, o capítulo 3mostra o que a vida urbana significava para o burguês provinciano. O cenário, em seguida, muda para Paris e para o mundo dos intelectuais – primeiro, como era visto pela polícia, que tinha sua própria maneira de enquadrar a realidade (capítulo 4), depois como era classificado epistemologicamente no texto-chave do Iluminismo, o Discours préliminaira da Encyclopédie (capítulo 5). O último capítulo mostra como a ruptura de Rousseau com os enciclopedistas abriu um novo caminho do pensamento e sentimento, que pode ser apreciado relendo-se Rousseau com a perspectiva de seus leitores.
      A noção de leitura está em todos os capítulos, porque se pode ler um ritual ou uma cidade, da mesma maneira como se pode ler um conto popular ou um texto filosófico. O método de exegese pode variar mas, em cada caso, a leitura é feita em busca do significado – o significado inscrito pelos contemporâneos no que quer sobreviva de sua visão de mundo. Tentei, portanto, ir fazendo a minha leitura do século XVIII e anexei textos às minhas interpretações, de maneira que meu próprio leitor possa interpretar esses textos e discordar de mim. Não espero ter a última palavra e não tenho a pretensão à totalidade. Este livro não fornece um inventário de idéias de todos os grupos sociais e regiões geográficas do Antigo Regime. Também que exista algo como o camponês típico ou um burguês representativo. Em vez de sair à sua cata, persegui a série de documentos que me parecia mais rica, seguindo os indícios que me davam e apressando o passo logo tropeçava numa surpresa. Desviar-se do caminho batido talvez não seja uma grande metodologia, mas cria a possibilidade de se apreciar alguns pontos de vista incomuns, que podem ser os mais reveladores. Não vejo por que a história cultural deva evitar o excêntrico, ou abraçar a média, porque não se pode calcular a média dos significados nem reduzir os símbolos ao seu mínimo denominado comum.
     A confisão de não-sistematização não implica que tudo na História Cultural porque qualquer coisa possa passar como antropologia. O método antropológico da História tem um rigor próprio, mesmo quando possa parecer, a um cienstista social tarimbado, suspeitosamente próximo da leitura. Começa com a premissa de que a expressão individual ocorre dentro de um idioma geral, de que aprendemos a classificar as sensações e a entender as coisas pensando dentro de uma estrutura fornecida por nossa cultura. Ao historiador, portanto, deveria ser possível descobrir a dimensão social do pensamento e extrair a significação de documentos, passando do texto ao contexto e voltando ao primeiro, até abrir caminho através de um universo mental estranho.
      Esse tipo de História Cultural pertence às ciências interpretativas. Pode parecer demasiado literário para ser classificada sob a marca registrada de ciência, no universo do idioma inglês, mas se ajusta muito bem à de sciences humaines, na França. Não é um gênero fácil e está destinado à imperfeição, mas não deveria ser inviável, mesmo em inglês. Todos nós, franceses e “anglo-saxões”, pedantes ou camponeses, operamos dentro de coações culturais, exatamente como todos partilhamos convenções de fala. Então, os historiadores deveriam ser capazes de perceber como as culturas formulam maneiras de pensar, mesmo no caso os grandes pensadores. Um poeta ou um filósofo pode levar a linguagem aos seus limites mas, a certa altura, vai se deparar-se com a estrutura externa da significação. Para além dela, jaz a loucura – o destino de Hölderlin e de Nietzsche. Mas, dentro dela, os grandes homens podem testar e deslocar as fronteiras da significação. Assim, deveria haver espaço para Diderot e Rousseau, num livro sobre mentalidades na França do século XVIII. Incluindo-os ao lado dos plebeus matadores de gatos, abandonei a diferenciação habitual entre cultura de elite e cultura popular, e tentei mostrar como os intelectuais e as pessoas comuns lidavam com o mesmo tipo de problema.
      Percebo que existem riscos, quando alguém se afasta dos métodos estabelecidos da História. Alguns argumentarão que os dados são demasiado vagos para permitir que se chegue, algum dia, a penetrar nas mentes de camponeses desaparecidos há dois séculos. Outros se ofenderão com a idéia de que se interprete um massacre de gatos com a mesma linha de pensamento com que se interpreta o Discours préliminaire da Encyclopédie, ou mesmo com o fato de se chegar a interpretá-lo. E um numero ainda maior de leitores reagirá contra a arbitrariedade de se selecionar alguns poucos documentos estranhos como vias de acesso ao pensamento do século XVIII, em vez de se proceder de maneira sistemática, através do cânone dos textos clássicos. Acho que existem resposta válidas para essas objeções num discurso sobre método. Em vez disso, gostaria de convidar o leitor a começar a palmilhar o meu texto. Talvez não fique convencida, mas espero que aprecie a jornada.

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