terça-feira, 3 de maio de 2011

O Estado segundo Nietzche...(José Amorim de Oliveira Júnior)



O Estado
         Podemos considerar, basicamente, duas concepções de Estado, presentes no pensamento de Nietzsche, as quais ele chama com freqüência de Estado antigo (ou primitivo) e Estado moderno.

O Estado antigo (primeira concepção de Estado nietzschiana)
          Ainda em seus escritos de juventude, é possível identificar várias passagens onde Nietzsche inicia seus escritos políticos, refletindo sobre o Estado:
         O autor de Zaratustra reconhece a importância do Estado, embora ainda não lhe defina, um papel:
“(...) entendemos por estado (...) a mola de ferro que obriga o processo social. Sem estado, no natural bellum omnium contra omnes [guerra de todos contra todos] a sociedade não pode de modo algum lançar raízes em uma escala maior e além do âmbito familiar.”
          Já então, tem-se o entendimento que a existência do Estado é uma condição sine qua non para a convivência do homem em sociedade. O autor examina, então, qual é a base para a sustentação da autoridade do Estado, formulando a seguinte questão: “De onde surge (...) este poder súbito do Estado, cuja meta está além do exame e além do egoísmo do homem singular?” Nietzsche irá encontrar uma resposta bastante incômoda para aqueles que acreditam ser o Estado fruto de um pacífico e cordato pacto social: “É a violência que dá o primeiro direito, e não há nenhum direito que não seja em seu fundamento arrogância, usurpação, ato de violência.”
Desta forma, na base de fundamentação do Estado, o filósofo supõe haver não um contrato social mas sim a supremacia de forças: poderes mais fortes suplantam e dominam poderes mais fracos, através não de um contrato social, mas sim de imposição de violência. Em Nietzsche, a teoria do direito, com relação à criação do Estado, baseia-se na idéia das forças dos poderes envolvidos: o direito é um produto da força na medida em que ele é fruto dos conflitos que se travam dentro de uma sociedade, prevalecendo a posição dos mais fortes. Desta forma, prevalece ainda o princípio da realidade histórica das relações de poder, o que é um avanço no que se refere às teses contratualistas, que são bastante românticas com a idéia de um contrato social.
          O próprio filósofo diz: “Deste modo começa a existir o ‘Estado’ na terra: penso haver-se acabado aquele sentimentalismo que o fazia começar com um ‘contrato’ ”.
          O interessante é que esta tese não-contratualista, apesar de recorrente, apresenta contradição no pensamento nietzschiano, pois em algumas passagens o filósofo parece acreditar que o direito é fruto de um pacto, pois “Sem pacto não há direito.”. O filósofo afirma ainda que, por necessitar existir socialmente e em rebanho, o homem “(...) precisa de um acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes [guerra de todos contra todos] desapareça de seu mundo.”
          Essa é uma visão diferente da apresentada no Estado Grego. Aqui, a convivência social é um pacto. Lá, é uma imposição. Considerando como um todo, Nietzsche não aceita a idéia da origem do Estado como resultado de um contrato social pois tal teoria seria apenas fantástica; para o filósofo, o Estado tem uma origem terrível, sendo criação da violência e da conquista. É nesse sentido que ele considera que nós, modernos, temos uma maneira enganosa de entender a origem e o significado do Estado, fantasiando-o como fruto de um pacto, enquanto que na verdade ele deveria ser entendido como um processo assustador e terrível, relacionado a questões como escravidão e sofrimento.
          Em seu texto O Estado Grego, Nietzsche parece nos dar sua primeira descrição acerca da criação do Estado antigo:
“(...) a natureza, para chegar à sociedade, forjou a ferramenta cruel do estado – aquele conquistador com mão de ferro (...) A monstruosa inevitabilidade do estado (...) exprime-se quando vemos como os que foram submetidos pouco se preocupam com a origem assustadora do estado, tanto que não há no fundo nenhum acontecimento que a historiografia ensine de maneira pior do que a realização daquelas usurpações súbitas, violentas e, pelo menos em um ponto, não esclarecidas”
          “O estado, de nascimento infame, é uma fonte contínua e fluida de fadiga para a maioria dos homens.”
          O tema do surgimento do Estado é recorrente, em Nietzsche, assim como sua posição não-contratualista, questões que surgem em sua juventude e que serão delineadas em diversos momentos de suas obras posteriores, onde o autor reflete acerca do surgimento do Estado como, por exemplo:
          Humano, demasiado humano:
 “O indivíduo pode, na condição que precede o Estado, tratar outros seres de maneira dura e cruel, visando intimidá-los: para garantir sua existência, através de provas intimidantes de seu poder. Assim age o homem violento, o poderoso, o fundador original do Estado, que subjuga os mais fracos. Tem o direito de fazê-lo, como ainda hoje o Estado o possui; ou melhor: não há direito que possa impedir que o faça. Só então pode ser preparado o terreno para toda moralidade, quando um indivíduo maior ou um indivíduo coletivo, como a sociedade, o Estado, submete os indivíduos, retirando-os de seu isolamento e os reunindo em associação. A moralidade é antecedida pela coerção, e ela mesma é ainda por algum tempo coerção (...) Depois ela se torna costume, mais tarde obediência livre, e finalmente quase instinto: então, como tudo o que há muito tempo é habitual e natural, acha-se ligado ao prazer – e se chama virtude.”

          Além do bem e do mal:
“Digamos, sem meias palavras de que modo começou na terra toda sociedade superior! (...) homens de rapina, ainda possuidores de energia de vontade e ânsias de poder intacta, arremeteram sobre raças mais fracas, mais polidas, mais pacíficas, raças de comerciantes ou de pastores, talvez, ou sobre culturas antigas e murchas (...)”

          Genealogia da moral:
“Emprego a palavra ‘Estado’, mas é fácil compreender que me refiro a uma horda qualquer de aves de rapina, uma raça de conquistadores (...) que, com a sua organização guerreira deixaram cair sem escrúpulos as suas formidáveis garras sobre uma população talvez infinitamente superior em número, mas ainda inorgânica e errante. Tal é a origem do ‘Estado’”.

         Essa não é, porém, a única maneira como Nietzsche pensa a origem do Estado, oriundo de uma casta de conquistadores, que dominam populações mais fracas, de origem camponesa ou comerciante, agregando-as, constituindo com elas um único rebanho.
Nietzsche ainda apresenta uma outra hipótese, acerca da origem do Estado, ou melhor, de uma ordem sóciopolítica, hipótese essa segundo a qual o Estado seria fruto de populações fracas que, para combaterem um inimigo comum se unem, formando uma comunidade: “A comunidade, é no princípio, a organização dos fracos em vista do equilíbrio com poderes ameaçadores. Uma organização que tivesse por fim a superioridade seria preferível, se se chegasse a ser deste modo suficientemente forte para aniquilar a potência adversa. (...)”. Nesta passagem, porém, o filósofo refere-se a comunidade, e não Estado, significando um modelo de organização sóciopolítico primitiva.
Em que pese a contradição dos textos, a segunda hipótese não prevalece na exegese, visto que o esquema que propugna uma organização para fins de agressão e de força recebe maior destaque na obra do autor. De qualquer forma, em ambos os casos há um elemento comum, que é o esquema da imposição do poder na origem do Estado visando a conservação.

O Estado moderno (segunda concepção do Estado nietzschiana)
Antes de adentrar na crítica de Nietzsche ao Estado moderno, instigamos uma refutação da tese que pretende fazer do filósofo alemão um mero saudosista do Estado grego, afirmando seu desejo de um possível retorno aos gregos.
Tal tese não encontra sustentação em Nietzsche, a não ser por uma interpretação errônea, a partir do fato de ser o filósofo um eminente helenista, o que pode levar alguns a interpretar de forma inadequada as muitas reflexões sobre a política, nas quais se busca estabelecer paralelos a partir de uma comparação entre seu tempo (de Nietzsche) e o mundo grego.
O próprio filósofo manifesta-se contra um retorno aos gregos:
 “(...) um progresso no sentido e no rumo da velha civilização nem sequer é pensável.”
“(...) a cultura antiga deixou para trás sua grandeza e seus bens, e a educação histórica nos obriga a admitir que ela jamais recuperará seu frescor; é preciso uma estupidez intolerável ou um fanatismo igualmente insuportável para negar isso (...) um progresso no sentido e pela via da cultura antiga não é sequer concebível.
No que diz respeito a seu tempo, Nietzsche preocupa-se com o caráter demagógico da política, bem como sua intenção de influenciar as massas, vendo isso como uma característica comum a todos os partidos políticos:
“(...) por causa dessa intenção, todos são obrigados a transformar seus princípios em grandes afrescos de estupidez, pintando-os nas paredes. (...) se em toda política a questão é tornar suportável a vida para o maior número de pessoas, que esse maior número defina o que entende por uma vida suportável (...)”
Nietzsche é um grande crítico da política que tem como fundamento a demagogia, o desejo meramente de agradar à grande massa. Na visão do filósofo, a política definitivamente não pode ter a maioria como referência pois isso iria convertê-la em uma mera conformidade com a vontade popular. Esse é o principal problema da democracia, na visão do autor, tendo em vista que, ao falarmos de ‘popular’ estamos falando de uma maioria de pessoas que tem suas mentes ludibriadas pelo que Nietzsche denomina de as duas potências, a saber, o Estado e o poderio econômico, potências estas que, indubitavelmente, pretendem apenas tirar vantagem do povo para fins próprios, o que as coloca como embargo ao Estado, em sua tarefa de atingir seu objetivo, a criação de um novo tipo de homem, na visão do autor.
          O Estado, assim como as instituições que o compõem são invenções que servem para atender às necessidades de conservação. Desse modo, do ponto de vista dessa exigência, o Estado sempre desempenhou uma forma de domínio de agregação, desde a sua criação até a decadente forma do Estado moderno democrático.
No núcleo da reflexão que Nietzsche faz sobre a política contemporânea está sua crítica à dinâmica democrática, que se estende sobre o Estado, reduzindo-o à esfera da sociedade, conferindo-lhe a tarefa de ser mero atendente da vontade popular, ao mesmo tempo em que ludibria o povo com suas promessas vãs.
          Pode-se afirmar categoricamente, que as críticas de Nietzsche ao Estado moderno decorrem do fato de que o autor é contrário à democracia moderna que, com a sua proposta de justiça igualitária, é um impedimento para a efetivação da força mais elevada que constituiria um novo tipo de homem, superior ao atual. Na democracia, por terem de submeter-se à maioria (massas), os partidos políticos vivem a pregar e praticar a demagogia, o que os leva a converter seus princípios em grandes estupidezas destinadas a propagandas que, em última instância, confere-lhes a sobrevivência, por meio do engodo do povo.
          Hodiernamente, deixamos de ser guerreiros, de conquistarmos o que desejamos. Nietzsche quer resgatar no apático homem moderno, que se vê representado pelas instituições democráticas, o guerreiro, ativo, que luta pela sua pólis, participando ativamente de sua construção – ao contrário do homem moderno, mero agente passivo das mudanças. O moderno estado liberal caracteriza-se por uma desvalorização da atividade política concebida como arena pública.
A atitude de distanciamento que o autor recomenda, ao dizer que “(...) é preciso permitir a alguns, mais do que nunca, que se abstenham da política e se coloquem um pouco à parte”, não significa a apatia política, mas a possibilidade de se envolverem no cenário sóciopolítico através da reflexão, da crítica, do questionamento, da criação de novos valores aos quais a política deveria se referenciar, não ficando apenas no operacional, na lida. Afinal, uma sociedade largamente baseada em valores instrumentais e utilitários, determinada por uma política de poder e dirigida por uma ‘economia monetária, tal como Nietzsche encontrou no estado moderno, não está apta a alcançar uma concepção adequada de cultura, que é o objetivo de sua filosofia política.
          Ao tempo em que faz sua crítica ao Estado moderno, Nietzsche considera que o que nos falta hodiernamente é o agon, a tensão: não há luta, é tudo igual, distribuído, não-conquistado: para as sociedades que são incubadoras de homens fortes não há nada ganho, nada que deva produzir comodismo. As conquistas conseguidas pelos membros da sociedade são conquistas que se tem e não se tem ao mesmo tempo. Desta forma, Nietzsche critica as instituições liberais, que deixam os homens acomodados no convívio social, com a pretensão de que já conquistaram graus de direitos e satisfações desejáveis e que não necessitam de lutar mais. Desta forma, as instituições liberais servem como instrumentos mediocrizantes, tornando o homem pequeno, covarde e ávido de prazeres, embrutecendo-o.
          Nietzsche, ao fazer a leitura da conjuntura sóciopolítica de sua época, percebe que ela é apenas fruto das relações históricas, que o próprio homem construiu, ao longo do tempo, não tendo outra fundamentação além dessa. Acredita, também, que ela seja algo que deva ser superada, mas esse é um elemento constante em Nietzsche: para se substituir um valor, outro deve ser criado. Não é uma postura iconoclasta e niilista. É um projeto de construir-se uma realidade. Nesse sentido o filósofo fala da esperança que se deve ter: ele prevê a morte da “ordem social” de seu tempo e a criação de novos valores.
          Nietzsche vê perigos ocultos nas novas realidades políticas reveladas pelo mundo industrial e a democracia modernos e uma economia monetária. Ao tratar das ‘duas potências’ (Estado e poderio econômico), o filósofo antevê o perigo da degeneração da política enquanto dominada pelos interesses de classe da moderna economia monetária e pela racionalidade instrumental da tecnologia moderna, levando as pessoas a perderem o controle político de seus próprios destinos e tornarem-se politicamente apáticas.
          A crítica do autor ao moderno pensamento político, dá-se pelo fato de que ele subordina o político ao econômico, o que leva à degeneração da política, que ocorre quando esta se coloca a serviço de interesses econômicos e de mera autoconservação.

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