segunda-feira, 25 de abril de 2011

Obsessão por realidade: Delírio do real? (por Carolina Cunha Pereira)



                                    “Embora seja pura loucura, há método nela...”
                               (fala do personagem Polônio em Hamlet, Shakespeare)

Quando algo atinge um espelho, em quantos pedaços ele irá quebrar? Qual é o estrago que vai causar?...E quando algo atinge sua mente, em quantas partes você é dividido? Em quantos cacos a realidade comum se quebra? Qual o tamanho do estrago na sua vida? Impossível dizer ao certo. Assim como um projétil atirado contra o espelho, a doença mental chega sem alarde e o impacto dela contra a realidade pré-estabelecida causa um grande prejuízo na vida e até mesmo na personalidade do portador. A realidade comum se fragmenta em diversos cosmos – um verdadeiro universo de realidadestornando o portador um estrangeiro no mundo. Porém, até onde a realidade comum – aquela tomada por base para o bom funcionamento social, moral e até mesmo ético – corresponde à verdade de fato?  Até onde a realidade comum é “real” e até onde ela se trata de um delírio do real? E o que definiria algo como real (ou seja, pertencente à realidade comum)? O caráter inconclusivo - e até mesmo inconstante - dessas perguntas evidencia quão frágeis são os critérios tomados para definir a sanidade da loucura.
Estabelecer uma realidade comum é uma medida necessária ao convívio em sociedade. Jamais haveria consenso e convívio se cada um de nós vivêssemos de acordo com as regras de nossos mundos particulares.  Essa medida é necessária também para estabelecer a moral. Se cada um vivesse de acordo com seus próprios costumes, seria impossível estabelecer uma sincronia que proporcionasse a vida em sociedade. O impasse, entretanto, acontece quando essa realidade estabelecida é utilizada como paradigma para a verdade: Fronteiras entre o real e o irreal são estabelecidas de modo autoritário, fazendo com que tudo aquilo que destoe do dito coerente seja inexistente e, portanto, irreal, alucinatório. Mais perigoso é o impasse quando a realidade estabelecida é tomada como um aforismo: Neste caso, a realidade pré-estabelecida é imposta autoritariamente com o peso de valores e costumes, de modo que os destoantes sejam excluídos dela através das atribuições psiquiátricas. Se considerarmos que a realidade pré-estabelecida não é nada democrática - ou seja, leva em conta apenas as crenças, costumes e conceitos de um grupo de pessoas que, coincidentemente, são aquelas que se encontram no poder-, percebemos o quanto o uso dessa ferramenta é perigoso. E percebemos o quanto é interessante – para essas pessoas principalmente- que seja construída uma verdadeira obsessão por essa tal realidade.
É o que acontece no filme De repente, no último verão de Joseph Makiewicz. O filme conta a história da sobrinha de uma rica e importante socialite – que conhece segredos sobre a homossexualidade do primo – que sofre o trauma de vê-lo ser assassinado monstruosamente. Com medo de que a moça revelasse o segredo do filho, a socialite a rotula de insana e deseja que seja feita uma lobotomia para que sua memória seja prejudicada e, assim, o segredo jamais seja revelado. O filme traz a metáfora de que, muitas vezes, o dito irreal não necessariamente é algo que não deve ser levado em conta. Ele pode ser apenas uma verdade inconveniente para os valores e costumes culturais, religiosos e sociais vigentes. Pode ser tapa na cara da ciência e sua auto-estima inabalável, que se mostra onipotente e conhecedora de tudo, do universo à molécula de DNA. Pode ser um tapa na cara da religião, que afirma saber os mistérios da vida e da morte e o que uma força maior espera e quer de nós. Pode ser um tapa na cara do sistema político e da mídia, que insistem em ordenar a maneira como devemos ser, pensar, nos vestir, nos comportar, comer, beber e nos relacionar... Apenas uma realidade que não interessa.
Além disso, o filme também retrata a construção do delírio do real a partir da obsessão pela realidade pré-estabelecida: A socialite, obcecada pelos valores e costumes estabelecidos para a época – ou seja, a realidade comum da época -  idealiza o filho de certa forma que não enxerga a realidade dos fatos e ignora completamente os defeitos dele, chegando a ignorar até mesmo o fato de ele ser homossexual. Com isso, a personagem vive em estado de delírio – talvez deliróide? – constante durante a trama e chega a acusar a sobrinha de insana por não aceitar uma realidade distoante da sua.
Por fim, eis o paradoxo: A realidade é algo muito inefável para ser padronizada e delimitada com palavras. Além disso, estereotipar a realidade significaria licenciar a irrealidade e, portanto, a loucura, uma vez que tudo o que não é condizente com ela é desconsiderado. E tomá-la como o paradigma da verdade é um meio falacioso de estabelecer ordem e poder. Realidade é ponto de vista. É visão de mundo. É traço personológico. O resto é irreal.  

Um comentário:

  1. Muito Obrigada pela honra de ter meu texto publicado no seu blog...muito obrigada por gastar seu tempo lendo o que eu escrevo...e sobretudo muito obrigada por me dar o carinho e a importância que nunca me deram.

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